Osamu Tezuka (1928 – 1989) foi um “mangaká” – desenhista de mangás – influente no Japão e no resto do mundo. É lembrado no Japão como o “pai do mangá moderno” ou “Deus do Mangá”. Com sua obra “Shin Takarajima”, publicada em 1947, Tezuka começou o que ficou conhecido como a revolução dos mangás no Japão. Sua produção lendária gerou algumas das séries de “mangás” mais bem-sucedidas e premiadas daquele país, entre elas: “Astro Boy”, “Kimba”, “O Leão Branco”, “Dororo”, “Black Jack” e “Hi no Tori”. Osamu Tezuka não é o inventor dos mangás. É o mangaká que os popularizou. O desenho de Tezuka é facilmente identificável: o traço é claro, as imagens são simples, o enquadramento cinematográfico e o humor têm sempre seu lugar. O autor não hesita em se colocar em cena com sua silhueta reconhecível pela boina e os óculos grossos. Sua obra completa chega a mais de 700 mangás, com mais de 150 mil páginas. A grande maioria não foi traduzida do original japonês e continua inacessível aos leitores do Ocidente. Em 1954, publicou “Phoenix 1” (“Pássaro de fogo”), obra de 12 volumes, inacabada, considerada a obra da sua vida, segundo o próprio mangaká. “Phoenix” trata de reencarnação. Cada história envolve uma busca pela imortalidade, personificada pelo sangue do pássaro de fogo, que, conforme desenhado por Tezuka, assemelha-se ao “Fenghuang” – ave mítica que renasce das cinzas. Acredita-se que o sangue concede vida eterna, mas a imortalidade na Fênix é inalcançável ou uma terrível maldição, enquanto a reencarnação na visão budista é apresentada como o caminho natural da vida. Tezuka divulgou os quadrinhos japoneses ao redor do mundo. Foi assim que conheceu o artista francês de história em quadrinhos, Moebius (Jean Giraud, 1938 – 2012), e o cartunista brasileiro Maurício de Sousa. Em 2012, a Mauricio de Sousa Produções publicou duas edições da revista “Turma da Mônica Jovem”, com alguns dos personagens principais de Tezuka, incluindo Astro Boy, Black Jack, Safire e Kimba, junto à “Turma da Mônica”, em uma aventura na floresta amazônica contra uma organização criminosa de contrabando de árvores. Tezuka morreu de câncer de estômago, em Tokyo, aos 60 anos de idade, no dia 9 de fevereiro de 1989. Sua morte teve um impacto imediato no público japonês e no universo dos mangakás. O Museu Osamu Tezuka, dedicado a sua memória e obra, foi construído na cidade de Takarazuka, província de Hyogo, no Japão, cidade onde Tezuka viveu grande parte da vida.
João Scortecci
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O MANGAKÁ OSAMU TEZUKA
E, OU e NÃO DE BOOLE
O matemático britânico George Boole (1815 – 1864) foi quem inventou a estrutura de álgebra – conhecida hoje como álgebra booleana – que esquematiza as operações lógicas e está presente na programação dos videogames, no código dos aplicativos, programas de computadores e no motor de busca usado pelo Google. Em 1851, Boole confessou a um amigo sobre sua invenção: “A contribuição mais valiosa, se não a única, que fiz ou que provavelmente farei à ciência, e é o motivo pelo qual desejaria ser lembrado, se é que serei lembrado, postumamente.” As portas lógicas mais básicas são, na linguagem original de Boole, E (AND, em inglês), OU (OR) e NÃO (NOT). O logotipo do Google ilustra as portas lógicas usadas em computação e que são derivadas das funções de Boole. O nome “Google” teria sido um jogo de palavras, uma brincadeira, uma variação feita pelos seus fundadores, Larry Page e Sergey Brin, em 1998, com a palavra “googol”, termo cunhado pelo matemático estadunidense Edward Kasner (1878 – 1955), que representa matematicamente o número 10 elevado à potência de 100 ou 1 com 100 zeros. Dizem que, durante a criação do buscador, quando a palavra “googol” estava sendo considerada, um investidor escreveu “Google” – erroneamente – em um cheque. Page e Brin, teriam então gostado do nome e o adotaram. Um sinal de sorte? Talvez. A invenção de Boole foi negligenciada por muitos anos, até por matemáticos famosos, desdenhando-a como apenas uma curiosidade filosófica sem qualquer significância matemática. Acordei pensando nas “Leis do Pensamento”, princípios básicos da lógica – Lei da Identidade, Lei da Não-Contradição e Lei do Terceiro Excluído – consideradas a base do raciocínio válido, formuladas pela primeira vez por Aristóteles, filósofo e polímata da Grécia Antiga. Estudei o assunto em 2001, após a virada do século, para uma apresentação na Escola do Escritor. Procurei o trabalho e não o encontrei. Acontece. Boole, sempre ele, ajudou-me, então, com a pressão na cabeça: “Cada coisa é o que é. Uma afirmação é verdadeira, se e somente se ela é idêntica ao que está sendo afirmado. Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. É impossível que uma proposição e sua negação sejam ambas verdadeiras simultaneamente. Para qualquer proposição, ela é verdadeira ou sua negação é verdadeira. Não há uma terceira opção.” Anotei tudo e salvei o arquivo no Dropbox com o nome: E, OU e NÃO. Fui, então, tomar café: ovos mexidos, sem azeite, sem creme de leite e apenas três torradas Bauducco. Boole riu. Surrou os meus pensamentos. Perguntou-me: “Não há outra opção?”. “Não”, respondi. Na matemática da vida cada coisa é o que é.
João Scortecci
FREUD E OS DESEJOS REPRIMIDOS
Engordei. E já estou no processo de “desengordamento”. Perdi 3 quilos. Segundo o Dr. Google e a tabela peso x altura, preciso perder ainda mais 7 quilos. Hoje tenho 1,88m de altura. Já tive 1,90m. Estou encolhendo. Antigamente eu era alto; hoje sou grande. Meu avô Batista, o Batista da Light, dizia: “O primeiro sinal de velhice é quando começam a nascer pelos no nariz e nas orelhas!” Verdade. E digo, dando-lhe razão: também a queda dos pelos das pernas, das axilas e da região das genitálias. Acontece. Um detalhe, insignificante: nunca me preocupei com a queda dos cabelos da cabeça. Sou um careca feliz! Nada a ver com fatores inconscientes e desejos reprimidos – Freud não explica. Um comportamento ilógico: gosto de ver pessoas com muito cabelo. Tara singular? Talvez. De volta ao meu processo de “desengordamento”. Os meus jeans estão folgados, meus sapatos estão confortáveis e um terno antigo de que gosto muito, outro dia o vesti confortavelmente. O que estou fazendo: comendo tudo pela metade, tirei o pão, os refrigerantes, o creme de leite no ovo mexido e cortei a sobremesa pela metade. Vou sobreviver! Hoje tive um pesadelo terrível, até então, inédito. Assustador. Geralmente sonho que estou voando, brigando, trabalhando, visitando lugares da minha infância, no Ceará dos anos 1960. Desta vez foi diferente, terrível, estranho, assustador: estava numa festa boca-livre e comecei a comer de tudo, sem parar. O que vinha, eu garfava, mastigava e engolia, sem pestanejar. Minha barriga foi ficando gigante e virei uma bola, uma imensa pelota. Quando estava prestes a estourar, acordei. Consultei, então, o Dr. Google, sobre o significado do meu terrível sonho. Ele me disse: “Sonhar que come muito pode ter múltiplos significados, como presságio de abundância e sucesso ou pode indicar insatisfação e carência emocional. Outra interpretação é a de comportamento descontrolado, representando excesso de pensamentos, vícios, ciúmes ou críticas.” Li e reli o texto. Sempre que encontro um “ou” numa explicação sobre o significado de algo, fico cabreiro e desconfiado. É ou não é. Consultei também o Chat GPT, sem sucesso. Sou influenciável, mas tenho opinião própria. No fim de semana, tenho uma tremenda festa de aniversário no interior paulista. Vou comer de tudo! Pretendo arrebentar a boca do balão. Depois, juro, reinicio o meu “desengordamento”. Já disse: sou influenciável e gosto de escutar as vozes do Além. E mais: os pelos do nariz servem para proteger o sistema respiratório, agindo como uma barreira contra poeira, bactérias e vírus. Odeio Freud.
João Scortecci
ChatGPT: ERRAR É HUMANO!
Erros e acertos: são dois lados de uma mesma moeda, onde um não existe sem o outro. Meu pai Luiz dizia: Errar é humano! Temos que aprender a conviver com o erro. Aprende-se muito com os nossos erros. O erro nos ensina lições valiosas. E nos alertava, ainda: o que você não pode é insistir no mesmo erro. Isso é burrice! Aconselhava. Reconhecer o erro é importante! Ele nos fortalece o espírito. Guardei, então, a lição. No início do ano de 2025 - curioso sobre os avanços da inteligência artificial - perguntei para o ChatGPT sobre o escritor, editor, gráfico e livreiro João Scortecci. O IA respondeu tudo errado. Um desastre. Perguntei ainda: quais os 10 principais livros do escritor João Scortecci? Não acertou nenhum. Fiquei preocupado. Meu medo: quem consultasse sobre a minha pessoa receberia um pacote de informações erradas. Um desastre! No meio do ano, mês de agosto, refiz as mesmas perguntas para Chat-GPT e tive, então, uma pequena surpresa: mais da metade das respostas estavam corretas. Ufa! Pensei: reconhecer o erro é importante, mesmo para o AI. Hoje, refiz, pela terceira vez, as mesmas perguntas, exatamente iguais. Grande surpresa: o ChatGPT acertou tudo, listou, ainda, corretamente, os meus dez últimos livros, sem pestanejar. Meu pai Luiz tinha razão: o que não podemos é insistir no mesmo erro. Seria burrice, nada humano. Enfraquece o espírito, algo assim.
João Scortecci
ZIRALDO É FLICTS!
Era o ano de 1984 – eu já editor de livros e trabalhando no projeto de criar a Gráfica Scortecci - quando meu irmão, José Henrique, arquiteto, presenteou-me com um exemplar do livro “Flicts”, do escritor e cartunista mineiro Ziraldo (Ziraldo Alves Pinto, 1932 - 2024). Era um relançamento da editora Melhoramentos, da 1ª. edição do ano de 1969, lançado pela Editora Expressão e Cultura. “Flicts” foi o primeiro livro infantil de Ziraldo, também autor da série “O Menino Maluquinho”, um dos maiores fenômenos da literatura infantil brasileira. Conheci Ziraldo na Bienal do Livro de São Paulo, no ano de 1994, quando o evento ainda era realizado no Pavilhão do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. “Flicts” - representado por um tom terroso de bege - é uma cor “diferente”, que não consegue se encaixar no arco-íris, nas bandeiras e em lugar nenhum, e cujo merecido valor ninguém reconhece, a princípio. Desgostoso deste mundo injusto e cruel, Flicts - que “não tinha a força do Vermelho, não tinha a imensidão do Amarelo e nem a paz que tem o Azul” - resolve então sumir do mapa. Muda-se para a Lua e lá percebe que ela, "de perto, de pertinho, é flicts". Ziraldo faleceu no dia 6 de abril de 2024, aos 91 anos de idade. Guardo o livro até hoje com carinho. Vez por outra o mundo - vasto mundo - amanhece “Flicts”. Meu Pai Luiz dizia: “Cor de jumento novo!” Risos. É quando, então, observo a Lua cheia, de longe, de lado, de perto, de pertinho e dentro dela: com o coração de menino. E o terroso bege dos sonhos ilumina toda a imensidão do céu. O ano de 1984 foi assim: incrível! Ziraldo: saudade de você!
João Scortecci
FOI MAIS OU MENOS ASSIM
Foi mais ou menos assim. Só tive um patrão na vida. Experiência boa! De 1977 até 1982, quando, então, abri a Scortecci Editora. Um dia, do nada, o meu patrão me chamou na sua sala e comeu-me o fígado. Juro: Não me deixou nem respirar. Saí da sala sem saber o motivo da tremenda bronca. Perguntei-lhe: “Patrão o que eu fiz?”. Ele não me respondeu. Antes de deixar a sua sala - assustado e tonto, com nó nas tripas - pude observar no calendário gigante que ficava atrás da sua poltrona o meu nome "João" escrito com caneta piloto vermelha, na data do dia. Ferrei-me! Fui marcado e não sei o motivo. Meses depois – já tinha até esquecido a bronca – cometi, então, um erro grave no serviço. Uma cagada das grandes! Fui chamado novamente na sua sala, esperando pela demissão. Entrei, sentei e olhei o calendário. O meu nome estava lá, na data do dia, desta vez com caneta piloto na cor azul. Ele me olhou nos olhos e docemente começou a me elogiar. Falou das minhas qualidades, da minha inteligência e eficiência no trabalho e do quanto eu era querido por todos. Listou virtudes e predicados, que até então eu desconhecia sobre mim. Prometeu-me ainda um aumento de salário e um novo cargo na empresa. Pensei: O cara está “maluco de pedra” ou está de “sacanagem” comigo. Deixei a sala em silêncio, assustado e confuso da cabeça. No dia seguinte – fervendo - o procurei. Estava decidido: Isso não vai ficar assim! “Patrão, tenho perguntas. E muitas! Quero saber primeiro sobre o calendário com o meu nome: um dia na cor vermelha e no outro na cor azul. Segundo: um dia você me come o fígado, injustamente, sem motivo e no outro – depois de uma tremenda cagada que fiz – você me elogia e me promove na empresa. Exijo uma explicação!” Bati forte. Ele me olhou, sorriu, virou-se para o calendário na parede e respondeu na maior calma do mundo: “A primeira bronca já estava programada: você merecendo ou não. Nada pessoal. Isso explica o seu nome escrito no calendário na cor vermelha. Quanto à promoção e os elogios também já estavam programados. Isso explica o seu nome no calendário na cor azul. E tudo ficou por isso mesmo. Quando pedi as contas e deixei a empresa em março de 1982 para, então, montar a Scortecci Editora, ele me disse: “Boa sorte. Não dando certo no seu novo empreendimento você volta, o seu lugar vai estar aqui, reservado." E tudo ficou por isso mesmo: quando não há explicação, explicado está! É o que dizem.
João Scortecci
PAPAI SABE TUDO
Sou doido: mas não sou louco! É o que penso. No máximo um ogro – criatura mitológica do folclore europeu – enlouquecido. Em pesquisa antiga, do ano de 2012, feita pelo Instituto Britânico, li isto: “Crianças preferem o Google aos pais para tirar dúvidas”. Até aí, nenhuma surpresa. Eu já sabia! O Google substituiu, com propriedade, as enciclopédias Barsa e Britânica. O que assusta na pesquisa do Instituto Britânico de 2012 são os números: 34% das crianças do mundo não acreditavam que seus pais fossem capazes de ajudá-las a fazer o dever de casa e 14% não achavam seus pais inteligentes. E agora com a IA? Ferrou! Confesso, sem remorso: não fui capaz de ajudar meus filhos, quando crianças, com a lição de casa. Até tentei, juro. Optei pela contação de histórias mirabolantes, que guardei no coração, contadas pelo meu pai Luiz e pelo meu avô Batista, o Batista da Light. Na hora de dormir, contava uma aventura, até o dia em que minha filha Patrícia – esperta que só ela – disse-me: “Pai, você está inventando!”. Então, desisti. Percebi que ela havia crescido. De volta à pesquisa. Fiquei cabreiro – mesmo – com os tais 14% que não achavam seus pais inteligentes. Burros, na verdade! Aqui cabe o que mamãe Nilce dizia: “Santo de casa não faz milagre!”. E pensar que a pesquisa do Instituto Britânico é antiga, do ano de 2012. Doideira, né? Hoje – no ano de 2025 – esse número já deve ter ultrapassado 80%. Lembrei agora do “Papai Sabe Tudo” (“Father Knows Best”), seriado de televisão de muito sucesso transmitido no Brasil na década de 1960, pela TV Tupi, estrelado pelo ator Robert Young, no papel de Jim Anderson, um pai simpático e sabichão de uma família “feliz”. Naquela época ainda não existia o Google, e a IA era, até então, uma ideia do futuro. Bons tempos!
João Scortecci
DIA DO POETA
Dia 20 de outubro: Dia do Poeta! A data foi escolhida em razão do Movimento Poético Nacional (MPN), que surgiu na mesma data, em 1976, na casa do jornalista, romancista, advogado e pintor brasileiro Menotti Del Picchia. Fui amigo de Menotti que foi amigo do meu avô José Scortecci, na época da Revista PAN, semanário que circulou de 1934 até 1945. Foi PAN que publicou “Triunfo”, conto de estreia da escritora de origem ucraniana Clarice Lispector, em maio de 1940. Acompanho o Movimento Poético Nacional desde a sua fundação. Trata-se de uma entidade Cultural, sem fins lucrativos, regida por estatuto, com sede própria na capital do estado de São Paulo. O movimento foi fundado pelo mineiro e poeta Silva Barreto (Sebastião da Silva Barreto, 1918 - 2010), autor de 15 livros, dois deles publicados pela Scortecci: “Patrocínio – O Espártaco de Bronze” e “Símbolos da hora amarga e outros poemas”. Sempre que possível, participava das reuniões do MPN, na época realizadas no Círculo Militar de São Paulo, no Ibirapuera. Na Wikipédia: “Poetas podem se descrever como tal ou ser descritos como tal por outros.” Entendi, talvez. Na visão geral criada pelo IA: “Ser poeta é mais do que apenas escrever poemas; envolve expressar sentimentos e ideias de forma artística, usando a linguagem para comunicar o mundo, a alma e a vida. Um poeta vive em um constante estado de observação, interpretando as experiências e transformando-as em palavras que podem ser literais ou metafóricas. Essa capacidade de expressar o que sente é intrínseca à sua visão de mundo.”. Entendi, acho. Não sei o que dizer, confesso. Devo? Melhor não. Um amigo – outro dia – me aconselhou: “Scortecci, melhor ficar calado. Não balançar a cabeça e nem piscar os olhos. Qualquer movimento estranho pode significar: adesão, reprovação, perseguição de gênero ou cumplicidade!”. Ele –imprudentemente – talvez tenha razão. Logo eu que não tenho mais lágrimas nos olhos, somente no coração. Eu que pisco adoidado, sem pestanejar. O que diriam os poetas Paulo Bomfim, Cecília Meireles, Drummond, Renata Pallottini, Manuel Bandeira, Vinícius, Augusto de Campos, Leminski, Cora Coralina, Mário Quintana, Marina Colasanti, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, Affonso Romano, Suassuna, Patativa do Assaré, Bilac, Oswald, Solano Trindade, Mário de Andrade e outros, sobre a poesia IA, que anda fazendo versos mundo afora? Desconfio. Vez por outra digo: a poesia salva, cura as dores do mundo! Melhor mudar a fala, trocar de discurso, silenciar-me, de vez. "O relógio bate 9 horas. Uma pancada alta, sonora, seguida de uma badalada suave, um eco. Depois o silêncio." Foi o que me respondeu Clarice Lispector, apenas ela.
João Scortecci
ÂNFORAS E O LIVRO DAS TENTAÇÕES
Uma ânfora: ainda não tenho - um dia, quem sabe – compro, ganho de presente ou, então, afano, numa boa. Já surrupiei um livro! Não faz muito tempo. A epopeia aconteceu no último encontro de editores, livreiros, distribuidores e gráficos, em Atibaia, evento organizado pela CBL. Vi o livro e o coração resfolegou. Subiu nas alturas! Desejo incontrolável. “Quero o livro!” Disse. “Quanto?” Perguntei. “Não está a venda”. Foi o que escutei. Não gosto da palavra “não”. Ninguém gosta. “Vou então passar a mão!” Avisei. Risos, desconfiados. Foi o que fiz, perdidamente. Reencontrei o dono do livro – um editor - no último encontro da ANL, no Anhembi, em São Paulo. “Conheço você!” Disse-me. Agradeci e fui embora, feliz. Meu histórico de ladrão é pobre: Já furtei, às escondidas: uma coca-cola família, de um caminhão de entrega de bebidas, uma lata de suspiros da minha avó Sarah e 3 bolinhas de time de botão, da Loja Lobrás, da Praça do Ferreira, no Ceará dos anos 1960. Pouco? Talvez. Minha mãe Nilce diria: “Não importa, você é ladrão!”. Ânforas são vasos confeccionados em barro ou terracota, de forma ovóide - quase sempre - de duas alças simétricas. A palavra "ânfora" vem do latim amphora, que por sua vez é derivada do grego amphoreus, uma abreviação de amphiphoreus, palavra composta combinando amphi- ("nos dois lados", "duplo") e phoreus ("carregador"), do verbo pherein ("carregar"). Lendo sobre o Monte Testácio (Monte dos cacos), colina artificial construída na cidade de Roma durante os séculos I e III d.C., resolvi pesquisar e escrever sobre o assunto. O monte dos cacos formou-se por acumulação de fragmentos de ânforas. O monte ocupava uma área de 20.000 m² na sua base e atingia 40 metros de altura. Situava-se dentro da Muralha Aureliana, conjunto de muralhas erguidas em Roma, entre 271 e 275, durante o reinado dos imperadores romanos Aureliano e Probo. A muralha englobava todas as Sete Colinas de Roma, além do Campo de Marte e do distrito do Trastevere, na margem esquerda do rio Tibre. O monte, quase na sua totalidade, era composto por restos de cerca de 26 milhões de ânforas, de azeite de oliva procedentes de lugares como a Bética, Tripolitânia, Gália e outros. As ânforas chegavam ao porto de Roma e lá eram esvaziadas, quebradas em pedaços e depois, depositadas - ordenadamente - no Monte Testácio. Visitei a Muralha Aureliana, em Roma, no ano de 2008. E o Monte Testácio? Até então não existia. Roma é assim: lugar sagrado de almas e histórias. Desconfio ter vivido por lá, quando, então, teria depositado no Monte Testácio: azeite, livros, minhas tentações de alma e meus pecados de corpo.
João Scortecci
ESCOLA DO ESCRITOR: ENSINANDO APRENDE-SE MUITO!
A Escola do Escritor foi fundada em julho de 2004, por mim e pela bibliotecária Maria Esther Perfetti, hoje editora do selo infantil da Scortecci, Pingo de Letra. Funcionou ininterruptamente por 16 anos, até março de 2020, quando se iniciou a epidemia de Covid-19 e fomos obrigados a fechar o espaço, infelizmente. O cardápio da escola era completo e interessante: cursos sobre a arte de escrever, como cometer um poema, o mercado editorial brasileiro, como publicar um livro, marketing editorial, como montar uma editora, direito autoral, livros sob demanda e outros. Mais de 15 cursos e perto de 3 mil alunos. A ideia – depois do fechamento – sempre foi: reabrir a escola, após o fim da pandemia. Tentamos reabrir em 2025. Não deu certo. Talvez em 2026, quem sabe? Eu e Maria Esther curtimos essa ideia. Tivemos três endereços físicos, todos no bairro de Pinheiros, em São Paulo – Capital. No primeiro deles, no ano de 2006, talvez 2007, notamos a presença pontual de um aluno, na casa dos 65 anos, nos cursos, aos sábados. Entrava mudo e saía calado. Não perguntava, não anotava, não conversava com ninguém. Desconfiado e curioso, certo dia o abordei: “O que você faz? Qual a sua profissão? Está escrevendo um livro? Pretende montar uma editora? Posso saber?”. Encurralei-o. Ele sorriu e timidamente abriu o coração: “Sr. Scortecci, eu poderia mentir, inventar uma história qualquer, disfarçar. Não vou fazer isso. Estou adorando os cursos da escola. Não perco um. Eu sou engenheiro aposentado, trabalhei a vida toda na indústria química, numa multinacional americana. Meus filhos já são adultos. Hoje, em casa, somos eu e minha mulher. Aos sábados é dia de faxina pesada. Minha doce mulher, delegada de polícia, também aposentada, me coloca cedo pra fora do apartamento. Durante alguns meses, fiquei perambulando pelo bairro, até descobrir vocês. Estou aprendendo sobre autores, livros e a arte de escrever.” Antes de ir embora, abriu o coração: “Penso até em publicar um livro de poesias!”. Em 2023, procurou-me para publicar o seu livro. Vale o ditado: Ensinando aprende-se muito! Isso talvez explique o desejo de reativar a escola. A poesia salva!
João Scortecci
GILBERTO GIL NO SINTÉTICO DO PALESTRA
Doideira. Minha avó Sarah diria na lata: caduquice! Pois é. Ontem fui um dia agitado, amalucado. Agenda lotada, palestras, eventos do mercado editorial e gráfico, um discurso para escrever, um editorial e um monte de aniversários de família. Não é fácil cruzar a bola, matar no peito, dar uma caneta no zagueiro, um drible no volante grudento e ainda fazer o gol. Já fiz gols assim, todos nos meus sonhos de criança. Hoje me contento - apenas - em pegar um rebote, uma sobra de bola e cutucar para o gol. Gol é gol. Um detalhe: poupo, sempre, os goleiros. Já fui um goleiro ruim. A vida deles não é fácil. Já nasceram culpados. Onde pisam não nasce grama, mesmo em tempos de grama sintética. Doideira. Deitei tarde da noite, 23h45, quase já virando abóbora. Zumbido na cabeça, tontura e pernas doídas, além da conta. Fui ao show do incrível Gilberto Gil, na Arena Palestra Itália. Imperdível. Deus permita que eu morra antes do Gilberto Gil, da Maria Bethânia, do Ney Matogrosso e do Caetano Veloso. Já perdi muitos: Elis Regina, Adoniran Barbosa, Cazuza, Vinicius de Moraes, Luiz Vieira, Gal Costa, Tim Maia e Outros. Entrei em casa: abobalhado, cego de tudo e bêbado, depois de beber apenas água. Acordei cedo e fui dar conta de mim mesmo: tragédias! Encontrei o fone de ouvido – novíssimo e caro – dentro de uma xícara de café não tomado, esquecido na correria de ontem. Afogado! Perguntei para o Dudu, o cachorro espaçoso da casa: Foi você? Ele não respondeu. Estou agora tentando tirar Gil da cabeça: eu preciso! Viver não. Radinho de pilha - agora de bateria - precisa de fone de ouvido: faz parte da caduquice.
João Scortecci
PALATINA E OS EPITÁFIOS
A “Antologia Palatina” é uma coleção de poemas – na maioria, epigramas –, escritos durante os períodos clássico e bizantino da literatura grega. A antologia foi descoberta em 1606, na Biblioteca Palatina em Heidelberg, na Alemanha. Baseia-se na coleção perdida de Constantino Cefalas – estudioso bizantino conhecido como o compilador da “Antologia Grega” – do século X –, que, por sua vez, baseava-se em antologias mais antigas. Os poemas são curtos, de dois a oito versos no geral, escritos para serem gravados em lápides ou votivas. Epigrama é uma composição breve, poética e satírica, que expressa um único pensamento principal. Popularizou-se como epitáfio, quando colocado sobre objetos, estátuas, mausoléus, lápides ou tumbas. Os “sobre a tumba” são geralmente gravados em placas de metal ou pedra. Epitáfios de gente famosa: “Se eu não vivi mais, foi porque não me deu tempo.” (Marquês de Sade); “Estive bêbado muitos anos, depois morri” (Scott Fitzgerald); “Voltarei e serei milhões.” (Evita Perón); “O melhor ainda está por vir.” (Frank Sinatra); “Os filósofos têm interpretado o mundo de várias maneiras. O ponto, contudo, é mudá-lo.” (Karl Marx); “Isso é tudo, pessoal!” (Mel Blanc); “E agora, vão rir de quê?” (Chico Anysio); “O tempo não para.” (Cazuza). Eu tenho – desde sempre – o meu epitáfio: “Faço da minha vida de livros um poema sem-fim.” E que façam, então, a última vontade do morto. Machado de Assis escreveu: “(...) gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou”. Uma questão sob julgamento: quero ser cremado e isso parece ser um problema a ser resolvido, talvez.
João Scortecci
CURADORIAS: PELOS MISTÉRIOS DAS COISAS
Lendo sobre “Curadoria humana” para uma palestra programada para novembro de 2025: “É o processo de seleção, organização e gestão de informações, objetos ou conteúdos, realizados por um indivíduo. Ela se diferencia da curadoria algorítmica por envolver o discernimento, a criatividade e a emoção humana.” A ideia da apresentação é alinhar e comparar as duas curadorias: humana e algorítmica. Mote principal: "Para a inteligência artificial, uma lágrima é água e sal; para a inteligência humana, é emoção". A lágrima é a metáfora perfeita para essa distinção fundamental. Metáfora: é uma figura de linguagem que consiste em uma comparação implícita, na qual uma palavra ou expressão é usada com um sentido diferente do seu significado literal para criar uma relação de semelhança entre dois elementos. Na raiz do entendimento, o surgimento de um quinto elemento: que não é feito nem de terra, nem de fogo, nem de ar e nem de água. De poesia, talvez. A lágrima é composta de água e sais minerais: dores, cheiros, toques e amores. Possuí três camadas distintas: palavras, para evitar a evaporação do sangue do coração, pontos e vírgulas, que limpam e protegem os olhos do silêncio mortal e mel, camada doce que ancora e alimenta de sonhos o canal lacrimal na córnea. Curadoria humana é emoção. É metáfora poética. Comparação implícita - não declarado abertamente - pelos mistérios das coisas.
João Scortecci
CADELA LAIKA, SPUTNIK E OS ALENÍGENAS DO PASSADO
Foi no ano de 1962, numa noite de estrelas no céu e histórias de alienígenas, que fiquei sabendo da epopeia da cadela Laika e do Sputnik 1, satélite artificial posto em órbita ao redor da Terra pela União Soviética, em 4 de outubro de 1957. “É verdade Pai?” Tinha, na época, 6 anos de idade e queria ser astronauta. “Não estou vendo nada!”. Protestei. “Pai, satélite brilha igual estrela?”. Papai Luiz, então, pacientemente, contou-me o que sabia, o que havia lido na Revista Times. Contou-me a história da cadela Laika e sua viagem ao espaço. Fiquei maravilhado! Anos depois - já morando em São Paulo - fiquei sabendo que a cadela Laika havia morrido queimada e sem oxigênio, logo após o lançamento do satélite. Chorei, confesso. Os Russos, até então, já haviam lançado 5 outros Sputniks ao redor da Terra. No Ceará dos anos 1960, depois do jantar, levávamos cadeiras do terraço para a calçada da rua, e lá ficávamos no tempo. Televisão chegou depois, bem depois, e a vida de caçar estrelas do céu, satélites russos e alienígenas – que nunca apareceram – acabou ficando no esquecimento, na infância. Vez por outra, ainda, penso na cadela Laika: queimada, sufocada, sem oxigênio, perdida no inferno do espaço sideral.
João Scortecci
FELIS SILVESTRIS CATUS E EDGARD ALLAN POE
Todo gato doméstico tem um nome. A minha doce e sensível gata – ex-moradora de rua –chamava-se “Gatinha”. Acho que gostava do nome: nunca reclamou. Era mãe do Preto Garbo, um gato grande, branco e preto, que, quando saía para namorar, voltava todo arrebentado. Um dia, não voltou. Gatinha ficou. Foi colaboradora da editora durante muitos anos. Era manhosa e esperta. Independente. Assim são os gatos! Existem cerca de 250 raças de gato doméstico – “Felis silvestris catus”. São predadores de diversos animais, como roedores, pássaros, lagartixas e insetos. Vez por outra, Gatinha trazia de presente um pardal morto ou uma lagartixa. Jogava a caça em cima da minha mesa de trabalho e cobrava carinho e atenção. Gatinha não aceitava desaforos. Quando ignorada, subia na mesa e, com o rabo, jogava no chão a minha papelada de editor. Segundo pesquisas, gatos são o segundo animal de estimação mais popular do mundo, depois – numericamente – dos peixes de aquário. Isso eu não sabia. Sempre pensei que fossem os cachorros. A chegada de um camundongo na editora, batizado de Edgar Allan Poe, mudou tudo. O sossego acabou. Gatinha perseguiu o pequeno roedor e o pegou enfiado no ralo do banheiro. Levou-o até a minha sala e o soltou encurralado num canto. Ela me olhou e sorriu. Fez-me lembrar da foto do gato do restaurante O Gato que Ri, casa de massas do Largo do Arouche, na cidade de São Paulo, o qual frequentei semanalmente nos anos 1970. Gatinha cheirou Poe, sentou-se, cruzou as patas da frente e enamorou-se pelo poeta e seus encantos. A editora inteira olhando, admirando a trama poética. Poe balançou a cabeça, para cima, para baixo, para os lados e se aninhou de amor nas patas da Gatinha. Desarmei a ratoeira – a pedido da Gatinha – e montei na lavanderia dos fundos um quarto de dormir para o par. Depois de alguns meses, gordo e feliz, Poe sumiu. Penso ter visto numa noite escura e sombria – enquanto eu escrevia – um corvo no muro do quintal. Desconfio que Edgar Allan Poe foi levado deste mundo. Gatinha – entristecida – nunca mais foi a mesma. Viveu, ainda, mais alguns meses. Só isso e nada mais.
João Scortecci
CRIANÇA - DE CABEÇA QUE VOA - ACREDITA EM TUDO!
Criança – de cabeça que voa – acredita em tudo! Acredita em bruxa do céu, Papai Noel, cobra de duas cabeças e até em Saci-Pererê. Eu tinha seis anos de idade e já sabia que era do signo de Leão. Nasci no dia 2 de agosto, às 4 horas da manhã. “É verdade, mãe?” Mamãe Nilce respondeu balançando a cabeça. Foi numa noite de boca cheia e céu limpo que avistei, pela primeira vez, Denébola. “É aquela ali?” “Sim. A do rabo de felino que se movimenta feito cobra de luz no céu.” “Não vejo nada!”, protestei. Mamãe Nilce, então, disse: “Imagina a fera na sua cabeça que ela aparece. Liga os pontos!”. Foi o que fiz. Denébola, então, olhou-me de amor. “Está vendo aquela outra estrela de brilho maior?” “Estou”, respondi. “Ela é uma estrela Alfa e se chama Regulus. São quatro estrelas irmãs: juntas! Dizem que são os dentes do Leão.” “Jura?” Mamãe riu. Parecia feliz. Depois do clarão da noite, difícil dormir! Criança – de cabeça que voa – acredita em tudo: em bruxa do céu, Papai Noel, cobra de duas cabeças e até em Saci-Pererê. Sinto saudade de Denébola, de Regulus e do infinito do céu. Na cidade grande, o céu é um engodo. Denébola, cadê você? Silêncio. Fechei, então, a janela do quarto – liguei os pontos – e morri, feito cobra de luz no céu.
João Scortecci
O FIM DO MUNDO NA DISCOVERY CHANNEL
Na virada do século – quando o assunto era o Bug do Milênio e as profecias sobre o fim do mundo –, meu filho, Alexandre, na época com 14 anos de idade, curtia dinossauros, Cavaleiros do Zodíaco e os programas da Discovery Channel, canal por assinatura da Warner Bros que exibe documentários e programas sobre ciência, tecnologia, natureza, aventura e história. “Pai, o mundo vai acabar?” “Vai. Não sei quando!”, respondi. Desde os anos 1960, vez por outra – sempre que alguma tragédia acontece – o assunto Fim do Mundo reaparece na mídia e na boca do povo. Perguntei-lhe, então: “Filho, o que está lhe incomodando?”. Silêncio. Alguns minutos depois, ele veio e perguntou-me: “Onde vai começar o fim do mundo?”. Onde? Boa pergunta, pensei. Lembrei-me, então, de um sonho que tive quando criança, no Ceará dos anos 1960. Respondi: “Vai começar na China!”. “Na China?”, perguntou-me, surpreso. “Sim, na China.” Contei-lhe, então, o meu sonho apocalíptico de criança. “Estranho!”, comentou. “Estranho, por quê?”. Quis saber. Ele, então, justificou: “Deveria começar no Oriente Médio, numa guerra entre judeus e árabes, algo assim”. Entendo. Fez, então, outra pergunta: “O fim do mundo vai ser transmitido ao vivo pela CNN?”. “Quero assistir tudo, ao vivo, na TV!”, declarou, eufórico. “Eu também!”. Disse. Ele sorriu. “Não quero perder o fim do mundo por nada!”. Risos. Na época eu tinha 44 anos de idade e na cabeça um único desejo: vê-lo pronto para a vida! E pensar que, depois do fim, nada mais existirá!” Profetizei. Silêncio. "No sexto dia da criação, Deus criou os animais terrestres e depois - já de saco cheio - criou os seres humanos (Gênesis 1:24-31). “Poderia ter descansado no sexto dia e no sétimo, caído na gandaia, merecidamente. Tudo teria sido mais simples!” Resfoleguei. Alexandre, desinteressado do meu comentário estúpido, mudou de canal na TV e foi assistir Cavaleiros do Zodíaco. Simples assim.
João Scortecci
AZEITONAS PRETAS, RÉSTIAS DE CEBOLA E VIK VAPORUB
Gosto de azeitonas. Lembro da primeira que coloquei na boca: tira-gosto com uma lapada generosa de uísque Johnnie Walker, o preferido do meu pai Luiz. Tinha 11 anos de idade, talvez 12. Lá em casa – isso no Ceará dos anos 1960 – quase nada era proibido. Fui uma criança perigosa: tive armas de fogo, canivete, pau de Jucá, soco inglês, baú com fogos de artifício, charutos e uísques. Quando fazia danação: entrava na cinta. Castigo comigo não adiantava muito: eu fugia! Mamãe Nilce era quem operava a sova merecida: batia com vontade, nas pernas. Apanhei muito! É dessa época que aprendi a subir no alto do pé da goiabeira do quintal e lá ficar escondido, no silêncio do vento. Mamãe Nilce tinha coração mole: perdoava sempre. Eu sabia esperar, pacientemente. Ela, então, sorria com amor de mãe e me perdoava pela danação. A azeitona é o fruto amargo e oleaginoso da oliveira, uma árvore nativa da região mediterrânea e do Oriente Médio. Desde criança sabia que as azeitonas eram da cor verde e vinham de dentro de um vidro de 500 g, com tampa de rosca. Já morando em São Paulo, no ano de 1972, foi quando descobri que também existiam as azeitonas pretas e que no Mercado Municipal podíamos comprá-las a granel, por quilo. Desconhecia – até a vida madura – seus benefícios para a saúde: proteção cardiovascular e a ação antioxidante. Dizem: benefício é coisa de velho! Algo assim. As azeitonas eram, até então, apenas um delicioso tira-gosto e nada mais. Com cachaça, chega-se ligeirinho ao céu! Com as azeitonas pretas, surgiram também as pizzas, os molhos, os patês e os benefícios. Um detalhe insignificante – não leio rótulos por uma simples razão: não enxergo as letrinhas miúdas. Hoje, na boca dos 70 anos de idade, limito-me a fazer a força necessária para desrosquear a tampa do vidro de azeitonas. Outro dia, um amigo de sangue português me disse: “Azeitona preta é aquela que atingiu o seu processo de maturação completa. A principal diferença entre as azeitonas verdes e as pretas é a época da colheita. As verdes são colhidas imaturas; as pretas são colhidas já maduras, o que lhes confere um sabor mais suave e adocicado”. “Mentira! E as famosas azeitonas portuguesas?”. Ele riu. Abri o Google e fui procurar saber sobre o assunto. Ele tinha razão! A vida continua – vez por outra – me enganando. Na infância, eu achava que as cebolas nasciam em réstias e Vick VapoRub curava todos os pecados do mundo. Meu pai Luiz dizia sempre: a vida é desleal e desumana! Santo benefício: rogai por nós!
João Scortecci
AQUI NÃO HÁ NINGUÉM!
Maria do Meio, a louca, irmã caçula de Pedro, o Rei, adentrou no salão nobre do palácio e gritou, aos céus: “Aqui não há ninguém!”. Contou - com os olhos - as cadeiras do salão: 50 no total, e um longo corredor no meio, dividindo o espaço. Pedro, o Rei, acompanhado de sua guarda real, entrou no salão e percorreu todo o corredor, até o seu trono, que o aguardava. Em seguida, entraram um a um, todos os nobres da corte e se sentaram nos seus lugares de sempre. Os amigos de Pedro, o Rei, do lado direito do salão e seus opositores, do lado esquerdo. Maria do Meio, irmã caçula de Pedro, o Rei, aguardava de pé, inerte, estacionada no meio do corredor. Depois que todas as cadeiras foram ocupadas, Maria, gritou, mais uma vez: “Aqui não há ninguém!”. Todos riram. O Rei, então, preocupado com o que a corte pensaria de sua irmã caçula, bateu seu cajado no chão e gritou: “Aqui não há ninguém”. E todos do salão, inclusive os soldados da guarda real, responderam, saudando Pedro, o Rei: “Aqui não há ninguém!”. Maria do Meio, aparentemente satisfeita, resfolegou: “Depois a louca aqui sou eu!” Fechei o caderno azul das anotações do tempo, que já foi verde e no passado amarelo e o guardei na gaveta das loucuras da vida. Admiro os loucos de pedra: é com eles que conheço a natureza humana. Maria - a louca - então, gritou no pé do meu ouvido: Aqui não há ninguém! E eu, então, acordei de mim mesmo.
João Scortecci
CATECISMOS DE ZÉFIRO: O DEUS DA SACANAGEM
Eu – menino de tudo – no Ceará do ano de 1964, talvez 1965. Fui pela Rua Pero Coelho, na direção da Rua Pedro I, até a Cidade da Criança, hoje Parque da Liberdade, região central de Fortaleza. A banca de revistas que vendia “Catecismos” ficava – quase – na esquina com a Rua Solon Pinheiro. Pedi: “Moço, quero comprar um catecismo!”. O jornaleiro me olhou, fez que não escutou, deu volta completa na banca e, do nada, apareceu com um pacote embrulhado em papel de pão, amarrado com barbante. “Qual número você quer?”, perguntou-me. “O último!”, respondi prontamente. Guardei a revistinha na pasta do colégio e fui embora, veloz, com o coração saindo pela boca. Cortei caminho pela Praça da Igreja Coração de Jesus e entrei no Colégio Cearense. Fui até o banheiro e, lá, abri o exemplar do catecismo: “Princípios, Dogmas e Preceitos da doutrina pornô-erótica”, por Carlos Zéfiro, conhecido, também, como o “Deus da Sacanagem”. Carlos Zéfiro é o pseudônimo do funcionário público, carioca, Alcides Aguiar Caminha (1921 – 1992), com o qual ilustrou e vendeu, durante as décadas de 1950 e 1970, histórias em quadrinhos pornô-eróticos, no formato impresso 14 x 21 cm, com 24 a 32 páginas, que ficaram conhecidas por “Catecismos”. As revistas masculinas “Status” (1974, Editora Três) e “Playboy” (1975, Editora Abril), até então não existiam. Naquela época, quem alimentava o sonho pornô-erótico da garotada (e de muitos adultos, também) era o Mestre Zéfiro, que permaneceu no anonimato até 1991, quando foi publicada a reportagem reveladora do jornalista Juca Kfouri, para a revista “Playboy”. Zéfiro manteve o anonimato sobre sua verdadeira identidade por temer ter seu nome envolvido em escândalo, o que lhe traria problemas por se tratar de funcionário público. Foi também compositor, inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil, e parceiro de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, com quem compôs quatro sambas para a Escola de Samba da Mangueira, entre eles: “Notícia”, “A Flor e o Espinho”. Zéfiro faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 5 de julho de 1992, aos 70 anos de idade. Recentemente recebi pelo WhatsApp um vídeo com uma de suas histórias. Fiquei arrepiado: talvez, ainda reflexo corporal do primeiro arrepio, aquele, mágico, dos anos 1960, no banheiro do Colégio Cearense. Zéfiro, mestre do pornô-erótico em quadrinhos, Deus da Sacanagem, foi meu professor de catecismo, de muitos dos meus pecados de infância.
João Scortecci