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FILOMENA, A JABOTA PIRANGA / JOÃO SCORTECCI

Já criei uma jabota. Criamo-nos! O quintal lá de casa no Ceará dos anos 1960 e 1970, era de meio quarteirão, somando as quatro casas da Família Paula, batizadas de Vila Santa Terezinha, santa de devoção e muita reza da minha avó paterna Sarah do Carmo. A jabota aparecia no latifúndio na época do círculo das águas - inverno no Ceará - e sumia do mapa no calor do verão. Foi assim durante anos. Mudei-me para São Paulo em 1972 e a moça da carapaça ficou por lá, esquecida em algum lugar do passado. Hoje a Vila Santa Terezinha não existe mais, virou um grande estacionamento de propriedade do Banco Central do Nordeste. Filomena, a jabota, era uma legítima “piranga”, heroína silvestre do folclore indígena. Diz à lenda que no dorso da sua carapaça - inviolável - moram os segredos e os sonhos místicos da floresta. Iara, senhora das águas, dorme - todas as noites - na carapaça de uma jabota, protegida da mula sem cabeça, do anão curupira e do lobisomem das luas. Saci Pererê, menino alegre e peralta, quando a mata arde e queima, deita-se na relva para escutar os conselhos sábios do um velho Jabuti. E juntos, choram a dor da vida. Boitatá, cobra de fogo que protege a floresta da desgraça humana, é irmã do bem. É ela quem primeiro alerta a bicharada do perigo do fogaréu. O boto-cor-de-rosa, diz a lenda, se transforma num homem charmoso e sedutor, frequenta bailes e festas nas margens dos rios da Amazônia. Disfarçado com roupas brancas e chapéu feito do couro de jabota, seduz as moças solteiras, as leva para o rio, as engravida e depois desaparece na noite escuta. Até a Cuca, bruxa má, que sequestra e come crianças que desobedecem a seus pais respeita os jabutis. Isso tudo depois de lembrar - do nada - do anjinho de gesso que a professora Rosa me deu de presente no aniversário de 8 anos, quando ainda era menino de tudo. Ela com um beijo, disse-me: "Coloque o anjinho na cabeceira da sua cama, junto com a jabota Filomena! Foi o que fiz. Hoje, nos meu sonhos de criança, sempre, pergunto por eles. É quando, então, penso nas sazonalidades que é a vida. 

João Scortecci

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GARIBALDI, ANITA, GEROLAMO E O RISORGIMENTO

Gosto de olhar pinturas de cenas militares, batalhas, de guerras antigas, em especial do “Risorgimento”, movimento histórico de unificação da Itália. Os museus do mundo inteiro estão cheios delas. Podem reparar: sempre tem alguém olhando, vasculhando, procurando um rosto familiar. É o que faço, sempre. Procuro por mim mesmo. Algo me diz que vivi por lá. Fui um amanuense, um mensageiro, algo sim. Conheci o militar e pintor Gerolamo Induno (1825 – 1890) em Milão, na Accademia di Belle Arti di Brera, fundada em 1776, por Maria Theresia (Maria Theresia Walburga Amalia Christina, 1717 – 1780), governante da monarquia dos Habsburgos, Áustria. Gerolamo – naquela vida – era um sujeito tímido, silencioso, reservado e único. Enquanto pintava cenas militares, de guerras e mortes, eu recitava poesias, do alto de uma pedra no campo, inspirado pelas cores de seus quadros. Depois do sol, quase noite, bebíamos vinho e – então – embriagados, navegávamos pelos lugares do tempo. Foi no ano de 1859 que Gerolamo Induno resolveu se alistar na brigada de voluntários “Caçadores dos Alpes”, sob as ordens do general, guerrilheiro e revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807 – 1882), herói da guerra de independência Italiana. Não tive dúvidas: fui junto! Gerolamo logo passou a ser reconhecido por Garibaldi como o pintor oficial do “Risorgimento”, especialmente em questões de caráter oficial. É de Gerolamo um dos dois únicos retratos conhecidos da revolucionária brasileira Anita Garibaldi (Ana Maria de Jesus Ribeiro, 1821 – 1849), esposa de Garibaldi. Data de 1849 e foi identificado por oficiais de Garibaldi – que conviveram com Anita – como a representação mais fiel de sua aparência. O militar e pintor Gerolamo Induno – naquela vida – morreu em Milão, após uma longa enfermidade, no ano de 1890, aos 65 anos de idade. Despedimo-nos em silêncio. Até breve, disse-lhe. Ele sorriu, apenas. Decidi, então: nada mais o que fazer por lá; a Itália unificada desde 1861, Giuseppe morto em 1882, e Anita Garibaldi, a brasileira revolucionária, a "Heroína dos Dois Mundos", também morta, desde 1849. Deitei na relva do campo e parti, veloz, morto no relógio do tempo.

João Scortecci


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IMPRIMIR NO CORPO DO ESPÍRITO / JOÃO SCORTECCI

Veio a pergunta: Você é capaz de imprimir no corpo do espírito? Essa é nova e descobri hoje. É possível? Quis saber. Vida de gráfico não é fácil. Lembrei-me, então, de uma questão dos anos 1972: Qual a cor do amor? E nós - jovens de tudo - respondíamos pelo Deus: amor não tem cor! Levávamos o cálice, as hóstias e o silêncio da alma, até o altar da igreja de Santa Cecília. E pronto. “O amor não tem cor!” Era a resposta e tudo ficava assim e por isso mesmo. Éramos felizes! E a loucura da tal Flor de Plutônio? Sei não. Desconheço. Existe isso? Talvez. Pergunta da pergunta: Você é capaz de imprimir no corpo do espírito? Silêncio. Respondi, então: Eu sei transferir - vida e morte - para o papel, sei untar tintas, esfregar grafite nos olhos, riscar beijos na pedra sabão e rabiscar versos de amor nas areias do mar. E imprimir no corpo do espírito: você sabe? Sei não. No passado tudo era mais simples. Bastava acreditar - ter um pingo de fé - e pronto. Resposta satisfatória: O amor não tem cor! E agora? Complicou, né? “Imprimir” é verbo transitivo da terceira conjugação e o “ir” é imperativo. Sinto saudade do tempo do clichê, do carimbo, da tatuagem do chiclete, do soldadinho de chumbo, das figurinhas carimbadas de futebol, da coleção de tampinhas, das balas de menta, do jogo com bolinhas de gude, das arraias no céu do Ceará e mais do que tudo: das linhas de cerol. Éramos felizes! Cara chato: E imprimir no corpo do espírito? Prometi: vou procurar saber e depois retorno. Menti. Deve ser "coisa" de impressão em 3D, algo assim. Gráfico sofre. Desligou o celular. Salvei o número do infeliz como "Chato 32". Lista que segue, flor de plutônio, fila que anda, amor não tem cor, somente passado.

João Scortecci

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LIVRO DA IMORTALIDADE / JOÃO SCORTECCI

Livro de autor aflito – no prego – é torturante! Novato, então: um desespero só. Pior que tudo: quando o livro é o nosso. Muito sofrimento. Entregamos o livro pronto, com a promessa de depois – antes de liberar para impressão na gráfica – dar uma olhada final, uma arredondada. Mentira! Quando o livro volta da diagramação, bate aquele desespero mortal. Transpiração! Muda aqui, muda acolá, muda e muda. Dúvida cruel: “Jura que escrevi isso? Acho que mexeram no meu arquivo. Impossível”. Que doideira! Uma vez – juro que não faço mais – copiei o arquivo do livro diagramado no “Bloco de notas” e depois de volta para o "Word" e reescrevi tudo. Livro novo? Sim. Pensei: já que era livro novo, aproveitei e troquei também o título. Tenho uma planilha só com títulos e outra, com rascunhos. Vez por outra vou lá e trabalho – aleatoriamente – num deles. Qual? Um deles. Mil anos, talvez. É o tempo de que vou precisar para terminá-los. Nós, escritores, somos mentirosos além da conta. Vivemos com a cabeça nas nuvens dos pés. Quando a coisa aperta, vale a máxima: “A poesia salva!”. Em 50 anos trabalhando com livros – escrevendo, editando e imprimindo – só conheci um escritor honesto, corajoso e bem resolvido. Foi o Zacarias, viúvo, na época com 60 anos, da cidade de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Fechou contrato de edição do livro e pediu um prazo para concluir a obra, um romance policial, algo assim. Claro! Voltou na data combinada e sentenciou-me: “Não consigo terminar o livro! Estou desistindo.”. “Quer ajuda?”, perguntei. “Não, obrigado.” E desistiu. Foi embora feliz, radiante. A maioria de nós, escritores, mente, inventa desculpas: “Estou finalizando”; “Falta pouco”; “Fazendo ajustes”; “Dando a última olhada”; “Na revisão” ... Já escutei de tudo: “Esse é o meu último livro! Trabalheira, né?”. Sim. Mentimos, sempre. Todas as vezes em que começo novo livro – juro: meu último livro – lembro do Zacarias. Escritor feliz, determinado, resolvido e mortal. Digo sempre: a busca pela imortalidade cansa. Na sorte: a poesia salva! Deus lembrou, do hebraico Zekariah.

João Scortecci

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CHARLES BAUDELAIRE E O CATIVEIRO DO POETA / JOÃO SCORTECCI

Maldito cativeiro inacabado! Disse-me: "Faltou-me o tempo que não tinha!". O poeta francês Baudelaire (Charles-Pierre Baudelaire, 1821 – 1867) morreu no dia 31 de agosto de 1867. É considerado um dos precursores do simbolismo, movimento literário da poesia e das outras artes que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao realismo, ao naturalismo e ao positivismo da época. O seu livro "Les fleurs du mal" ("As flores do mal", 1857) é considerado um marco da poesia moderna. A obra, considerada na época imoral, foi atacada violentamente pela imprensa, censurada pela justiça, multada – cabendo ao escritor, 300 francos, e à editora, 100 francos – e foi recolhida sob acusação de insulto aos bons costumes. E mais, seis poemas de "As Flores do Mal" tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Foram eles: "O ideal", "Hino à beleza", "O perfume exótico", "O cabelo", "Um fantasma" e "O gato". Na solitude do espírito, resfolegou: "Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão!". Uma nova edição, acrescida de 35 poemas, foi publicada em 1861. E somente em 1924, ganhou edição completa, com os seis poemas censurados. Baudelaire, pôde, então, deixar o maldito cativeiro. Em 31 de maio de 1949, 92 anos após sua morte, a Sociedade dos Homens de Letras, num processo diante da Corte de Cassação – tribunal de alta instância – reabilitou Charles Baudelaire e seus editores. Baudelaire morreu de sífilis, em Paris, aos 46 anos de idade, sem a realização em vida do projeto de uma edição final de "As flores do Mal", como era o seu desejo. Escreveu: “Ah! pobre! O veneno e o punhal disseram-me de ar zombeteiro: Ninguém te livrará afinal de teu maldito cativeiro.". E nele, espírito maldito, voou livre, no rabo do gato, descabelado, perfumado, imortal fantasma, no Jardim das Flores do Mal. E lá está. 

João Scortecci

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AS ROSAS DO JARDIM DE CARLITO MAIA / JOÃO SCORTECCI

O publicitário Carlito Maia (Carlos Maia de Souza, 1924 – 2002) nasceu na cidade de Lavras, região do Campo das Vertentes, estado de Minas Gerais. Dizia sempre: “Vim ao mundo a passeio, não em viagem de negócios”. Mudou-se para a cidade de São Paulo, no início dos anos 1930, e se tornou um dos mais conhecidos publicitários do País. Carlito Maia foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e autor dos slogans "Lula-lá", "OPTei" e “Sem medo de ser feliz”. Segundo seu depoimento, foi: moleque, lavador de xícaras de café, rebelde, office-boy, contestador, reservista de 2ª categoria do Exército Brasileiro, antifascista, sargento da Força Aérea Brasileira, boêmio, despachante policial, picareta, corretor de seguros, "clochard" – pessoa que vive em meio urbano sem trabalho nem domicílio –, ajudante de despachante aduaneiro, "bon-vivant", tradutor público juramentado... Em 1954, ingressou na Escola de Propaganda do Museu de Arte Moderna. Trabalhou nas agências McCann-Erickson, Atlas, Norton, Alcântara Machado, Magaldi, Maia & Prosperi, P. A. Nascimento, Estúdio 13, Esquire e, finalmente, na Rede Globo, onde permaneceu por mais de 20 anos. Em 1978, foi eleito Publicitário do Ano. Entre suas máximas, figuram: “Uma vida não é nada. Com coragem, pode ser muito.”; “Brasil? Fraude explica”; e “Nós não precisamos de muitas coisas, só uns dos outros”. São dele também as expressões “Tremendão”, “Ternurinha”, “Jovem Guarda” e “É uma brasa, mora!”, esta usada pela primeira vez como título de um show do cantor e compositor Roberto Carlos. Carlito Maia se notabilizou por enviar flores para uma infinidade de estreias de espetáculos teatrais, lançamentos de livros e vernissages. Recebi o meu primeiro buquê de flores, belíssimo e inesquecível, no ano de 1987, quando do lançamento do livro de poesias "A morte e o corpo", e o segundo e último, em 1989, no evento de lançamento da "Antologia Poética de Pinheiros", volume I, na Scortecci Editora na Galeria Pinheiros, 1704, loja 13. Em sua homenagem, foi criado, em 2000, o Troféu Carlito Maia de Cidadania, que premia pessoas que desenvolvem ações sociais em prol da cidadania e na luta pelos direitos humanos. Carlito Maia faleceu no dia 22 de junho de 2002, aos 78 anos de idade. Na minha vida de livros, no poema sem-fim, reescrevo, sempre, a sua melhor “deixa”: “Evite acidentes, faça tudo de propósito!” Assim seja!

João Scortecci

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MADEMOISELLE CINEMA DE BENJAMIM COSTALLAT

O jornalista, escritor e editor carioca Benjamim Costallat (Benjamim Delgado de Carvalho Costallat, 1897 – 1961), estreou na imprensa aos 21 anos de idade, com a coluna de crítica musical “Da letra F n.2”, publicada no “O Imparcial”, jornal da cidade de São Luís, Maranhão, líder absoluto no mercado maranhense. Benjamim Costallat foi colaborador fixo dos jornais Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil e do Semanário PAN, do editor e gráfico José Scortecci. Influenciado pelo jornalista, cronista, contista, romancista, tradutor e teatrólogo João do Rio (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, 1881 – 1921) escrevia crônicas sobre o submundo do Rio de Janeiro. Ficou conhecido pela sua série Mistérios do Rio. Seu livro de estreia foi “A Luz Vermelha” (Editora Leite Ribeiro, 1919). Seu romance “Mademoiselle Cinema” (1923) foi censurado e recolhido das livrarias, considerado pornográfico e contrário aos valores morais da família brasileira. “Mademoiselle Cinema”, até ser recolhido, já havia vendido mais de 60 mil exemplares. A obra conta a vida de Rosalinda, uma jovem que com apenas 17 anos, filha de um político do Piauí que chegou a ministro, escandaliza a sociedade carioca com seu comportamento despudorado. Frequenta bailes de jazz, deixa-se levar a garçonnières - lugares utilizados para encontros amorosos -, faz uso do álcool e da cocaína. O livro foi um best-seller na década de 1920, rendendo ao autor a fama de maldito, por sua abordagem franca do sexo e violência. Benjamim Costallat fundou, em 1928, com o empresário italiano José Miccolis, a editora Costallat & Miccolis, dedicada a livros de grande apelo popular, muitas vezes, sensacionalistas. Publicou autores como Mauro de Almeida, Antonio Celestino, Patrocínio Filho, Ribeiro Couto e Orestes Barbosa, todos conhecidos pelo seu trabalho na imprensa carioca. No Semanário PAN, ano II, 1936, número 10, escreveu: “A sinceridade dos homens foi sempre duvidosa. A do próprio Adão já deixava muito a desejar. E a Eva nem se fala!”. Os livros de Benjamim Costallat - quase todos - são misóginos -  preconceito contra mulheres - e machistas, e foram escritos para o público masculino da época. 

João Scortecci


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FUZIS, FEIJÕES E FLATULÊNCIAS / JOÃO SCORTECCI

“Sinédoque” é uma figura de linguagem – a palavra vem do grego e significa “compreender várias coisas conjuntamente”. É um tipo especial de “metonímia”. Caracteriza-se pela substituição de um termo por outro. Consiste na atribuição da parte pelo todo (pars pro toto), ou do todo pela parte (totum pro parte). Isso tudo - ou quase nada - para tentar entender, ou desenhar, quem sabe, o perfil da relação-sinédoque entre um fuzil - pedra que produz fogo - e um feijão - semente que alimenta e alegra a barriga dos brasis com proteínas, ferro, cálcio, vitaminas, carboidratos e fibras. Aqui - em dia de incertezas - descubro “conjuntamente” a relação-sinédoque entre fuzis e feijões. Leio, também, sobre flatulências, gases expelidos pelo ânus, puns, traques e muito sobre armas automáticas, modelo 762, de 20 tiros, que custam, aproximadamente, 12 mil reais, em lojas da Internet, o equivalente a 1600 quilos de feijão. Minha “pederneira” fartou-se de gases! Feito isso, iniciei, de pronto, outra leitura qualquer, numa sequência no modo “totum pro parte”. Na página seguinte, no rodapé das ideias, outra sinédoque. Coincidências não existem! Li sobre o rastilho de nitrato de potássio, enxofre e carvão que assola o país. Na fábula “João e o pé de feijão” o menino sonhador - troca uma vaca - a única que tinham - por um punhado de feijões mágicos. A mãe de João, enfurecida, joga os feijões pela janela. Os feijões brotam num gigante pé de feijão, que sobe até o céu. João, então, escala o feijoeiro e, lá no alto, encontra um castelo, lugar habitado por um gigante cruel que se alimenta da miséria humana. A história continua, cheia de aventuras, até o dia em que João - fugindo do gigante que o persegue e com o saco cheio - pega um machado e corta o pé de feijão. Moral da história: Estou tentando compreender várias coisas ao mesmo tempo! Quase isso.

João Scortecci

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MENOTTI DEL PICCHIA E A BATALHA PELO LIVRO

Menotti Del Picchia (1892 – 1988), na Revista PAN – Semanário de Leitura Mundial – Ano II – número 4 – 16 de janeiro de 1936 – página 15, coluna: “O Imperativo da Hora – Modernizar-se ou Perecer”: “O maior inimigo do livro brasileiro é o próprio governo federal. A ele se deve a falta de difusão do único elemento de progresso e de cultura: o livro. Talvez o governo federal não seja um culpado consciente. Talvez não passe de um sono que dormiu e foi embrulhado pelos espertalhões negocistas que superabundam no país. A razão de justificarmos o governo reside no fato de não podermos compreender que o poder público de uma nação possa contribuir para embaraçar a expansão do livro. Seria julgá-lo criminoso demais ou inepto demais. O fato é que, mercê da legislação federal criando o truste do papel brasileiro, milhões de crianças nossas são prejudicadas em benefício da ganância de um grupinho de negociantes sem entranhas. O papel nacional – o pior papel do mundo – é relativamente ao nosso padrão de vida – o mais caro do mundo. Tivesse o governo derrubado a barreira alfandegária que torna impossível a importação de papel estrangeiro e então o problema da cultura nacional estaria automaticamente resolvido (...)”. Menotti Del Picchia foi colunista colaborador da Revista PAN (1935 – 1945), Semanário de Leitura Mundial, do editor e gráfico José Scortecci (1902 – 1988), avô materno do editor e gráfico João Scortecci.

João Scortecci



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AS MULHERES ITALIANAS DE BENITO MUSSOLINI

Benito Mussolini (Benito Amilcare Andrea Mussolini, 1883 – 1945), no dia 26 de maio de 1927, pronunciou um dos seus discursos mais famosos depois de ficar sabendo que a população da Itália estava diminuindo. Ficou conhecido como “Discurso da Ascensão”. O discurso foi publicado na Revista PAN - Semanário de Leitura Mundial, ano II, número 6, de 30 de janeiro de 1936, página 18, do editor e gráfico José Scortecci, pelo jornalista italiano Gaetano Solvemini. Escreveu: “A nação aproxima-se a passos rápidos de um terrível precipício: o decréscimo da população. De 1881 a 1885 tivemos a nossa maior média de nascimentos. Média de 38 crianças para cada 1000 habitantes. Hoje baixamos a 27. Se a nossa população decresce não poderemos fundar um império, e seremos sim, rebaixados a condições de colônia. É tempo de proclamar isso e destruir convicções erradas que nos poderão levar a um terrível despertar”. Ao concluir seu discurso Mussolini dava a seguinte ordem às mulheres italianas: “A fim de alcançar um lugar importante no mundo, à Itália deve começar a segunda metade do presente século com uma população de sessenta milhões de habitantes”. Durante a Segunda Guerra Mundial, Benito Mussolini, publicou no “Giornale D’ Itália” de Roma, os Dez mandamentos das noivas italianas: 1) Seja fiel na separação. 2) Permaneça meiga e serena para venceres o desespero da separação. 3) Continue a tarefa que seu noivo interrompeu ao partir. 4) Dê espontaneamente seus braços e cérebro para preencher os claros no campo da indústria. 5) Pratique estritamente a autodisciplina econômica. 6) Leve uma vida austera e simples. 7) Preste assistência voluntária aos doentes, aos fracos e fatigados. Seja orgulhosa da sua maternidade, a despeito da separação. 9) Coserve a fé na nossa vitória. 10) Ponha de parte todas as dúvidas." No seu “Discurso da Ascensão”, concluiu: “O ideal para o fascista é agora a mulher volumosa. Assim, instituiu-se a propaganda e usou-se de pressão moral. Visto que são estéreis - em relação às mulheres magras - e que a esterilidade é uma traição a pátria e muito natural que essa traição seja castigada com a morte!”. Benito Mussolini e sua amante Claretta Petacci (1912 – 1945), foram executados no dia 28 de abril de 1945, por antifascistas no vilarejo de Giulino di Mezzegra, no Norte da Itália, quando tentavam escapar pela fronteira com a Suíça. Os corpos de Mussolini e Petacci foram levados para Milão, quando foram expostos e pendurados de cabeça para baixo, na Piazzale Loreto, uma praça próxima à Estação Central de Milão. Os corpos de Mussolini, Petacci e de outros oficiais fascistas, foram amontoados e violados: cuspiram, urinaram, chutaram e balearam os corpos. A face de Mussolini ficou desfigurada pelos golpes.

João Scortecci

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O CUCO DA DERRADEIRA BADALADA

O Cuco é um pássaro folgado e esperto! É o que dizia meu avô. Um parasita! Deposita os seus ovos nos ninhos de outras aves e depois voa e desaparece. Durante muitos anos – ainda criança de tudo – jurava que os cucos fugiam da mata e iam morar dentro dos relógios de parede. Nas minhas histórias antigas – histórias do passado – sempre encontro relógios de parede. Paro no tempo e fico por lá, vendo-os abrir a porta do ninho e cantar: “Cuco, cuco, cuco!”. Já deparei com relógios quebrados, sem corda, com pêndulos roubados, endurecidos, trincados e alguns poucos – raridades – perfeitos, em ótimo estado, funcionando a todo vapor, badalando horas, que nos ferem e nos matam. Já resgatei um cuco de um relógio velho, quebrado. Guardei-o numa gaveta de meias até o dia em que ele, misteriosamente, sumiu. Deve ter voado e ido fazer ninho noutro pé de meia. Dizem que a invenção do relógio cuco se deu na região da chamada Floresta Negra, no sudoeste da Alemanha e foram exportados para o resto do mundo a partir de meados da década de 1850. O que eu não sabia – morrendo e aprendendo – é que os filhos do Cuco são verdadeiros “bandidinhos”. Logo ao saírem dos ovos, empurram para fora do ninho os recém-nascidos autênticos da ninhada, tomando-lhes o reino. Em latim,”Vulnerant omnes, ultima necat!” significa, em tradução livre: “Toda hora fere, a derradeira mata!”. O meu coração – ele vive nas minhas histórias antigas – badala e fere. Pia, canta e grita: aguarda, inevitavelmente, pela badalada derradeira do relógio de parede.

João Scortecci


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A IMPRESSÃO DO ARCO-ÍRIS / JOÃO SCORTECCI

A palavra “ordem” significa disposição ordenada das coisas. Gosto dela, mesmo diante do caos, do incerto, do imprevisível, do arbitrário que assolam o mundo. "Para sair do buraco, precisamos parar de cavar", diz o ditado popular, sugerindo que, para resolver um problema ou muitos, é preciso identificar e interromper as ações que estão agravando a situação. Para este editorial, recorri ao pensamento amplo e liberto do Iluminismo, movimento cultural e filosófico europeu dos séculos XVII e XVIII, que valorizava a razão, a ciência e as liberdades individuais, como meios de superar o obscurantismo e as injustiças sociais. Não satisfeito, reli trechos da obra Depois do Futuro, do filósofo e ativista italiano Franco Berardi (Ubu Editora, 2019), em que o autor repassa as vanguardas do século XX para mostrar como o futuro, até os anos 1970, era visto com esperança e confiança. Tive o privilégio de viver minha adolescência no esplendor dos anos 1970. Aprendi – isso ainda criança de tudo – que, desenhando e pintando um arco-íris numa folha de papel, estaria construindo uma armadura, selando contra o caos as indisposições da vida, o desalinho do mal, as doenças, o obscurantismo e as injustiças sociais. Estaria alado e iluminado – pássaro na curva do tempo –, voando liberto na ordem das coisas, no magma do arco-íris, até o baú das riquezas, da generosidade e dos sonhos da alma. Viajando no tempo, tornei-me adulto e, mais recentemente, um idoso. Folheando páginas de um livro de colorir – que ganhei de presente para a minha neta –, encontrei no miolo o desenho de um arco-íris, ainda por colorir, pedindo para ser iluminado. É o que farei. No editorial da Revista Abigraf – importante espaço da indústria gráfica – pedem-me, sempre, para escrever algo positivo, desafiador, iluminado de sonhos e esperanças. É o que faço. E pretendo fazê-lo, enquanto acreditar na singularidade mística do arco-íris, no vindouro, no depois do futuro. Desconfio dos homens, mas acredito na humanidade! Entregarei de presente para a minha neta o livro com a impressão do arco-íris já iluminado, com as cores da esperança, do pensamento livre e da justiça social. É o que farei.

João Scortecci

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O MARINHEIRO EDGARD VIANNA E A CORVETA JACEGUAI

A Corveta Jaceguai (H-37), originalmente um navio-mineiro, foi transformada em corveta em 1942, para auxiliar nas operações da Segunda Guerra Mundial. Após o conflito, em 1946, o navio retornou ao serviço hidrográfico. Com a entrada do Brasil na guerra, o navio foi equipado com armamento e reclassificado como corveta, atuando na Força Naval do Sul. A transformação em corveta envolveu a instalação de canhões de 47 mm, dois projetores centrais em "Y", calhas para cargas de profundidade e recargas no convés. A corveta Jaceguai foi a segunda embarcação da Marinha do Brasil a receber esse nome, em homenagem ao Almirante Artur Silveira da Mota (1843 – 1914), o Barão de Jaceguai. A corveta foi construída em 1919, dentro do Programa de Emergência de Guerra da Marinha Britânica pelo estaleiro The Clyde Shipbuilding C. Ltd., Glasgow na Escócia. Recebeu o nome de Fair Field, sendo um dos 88 navios da mesma série, da classe Hunt, que foram construídos, dos quais 41 foram desincorporados ou vendidos, com seis deles sendo transformados em Navio Hidrográficos. O Navio Mineiro-Varredor Fair Field foi vendido a uma empresa particular da Argentina para operar como cassino flutuante e transporte de passageiros entre Buenos Aires e Colônia no Uruguai. Com a falência da empresa, o navio foi arrematado em leilão pelo Coronel Ganzo Fernandes, que passou a utilizá-lo, como transporte de passageiros entre Rio Grande (RS) e Porto Alegre (RS) com o nome de Flecha, pertencente à Companhia Sul Rio Grandense de Navegação. Em 1936, o navio-transporte Flecha foi adquirido pela Marinha do Brasil para ser Navio-Hidrográfico. Em 1942 para atender as necessidades da guerra foi transformado em corveta e armado para a guerra. Participou efetivamente da Segunda Grande Guerra Mundial no período de setembro de 1943 a dezembro de 1944 em operações de guerra, realizando 14 missões de escolta de comboios de navios mercantes brasileiros e estrangeiros. Edgard Vianna, nascido em 7 de novembro de 1923, no Rio de Janeiro, alistou-se na Marinha Brasileira em 6 de fevereiro de 1941, identificado sob registro número 54441, inicialmente servindo no NM Itajaí, conhecido como "Rebocador Rio Pardo" e depois como "Rebocador Itajaí" e a partir de 30 de setembro de 1942, na Corneta Jaceguai, até 30 de maio de 1947, quando deu baixa. Em 02 de maio de 1946 lhe foi concedida a Medalha de Guerra de três estrelas. Lendo a caderneta - Corpo do Pessoal Subalterno da Armada - do marinheiro Edgard Vianna, número de registro 410352, de 4 de fevereiro de 1941, não há registros de acidentes, punições, deserção, além do registro da promoção de 2ª Classe para 1ª Classe, em 10 de agosto de 1946, número 34946. Na caderneta, colado como “Notas Diversas”, entre as páginas 7/8 e 9/10, documento datilografado, de Declaração de Guerra, boletim do MM 37, de 1942, decreto 10358, de 31 de agosto de 1942, informando Estado de Guerra, em todo o território Nacional contra os Estados da Alemanha e Itália, Estado de Beligerância, decreto de 22 de agosto de 1942, do Presidente da República Getúlio Vargas (1882 – 1954), e de Mobilização Geral, decreto número 10451, de 16 de setembro de 1942, em todo território Brasileiro. A nota foi emitida a bordo da Corveta Jaceguai, em 15 de janeiro de 1946. Sobre o marinheiro Edgard Vianna - marido de Maria Adelaide, irmã caçula de Belkiss Ramalho, minha sogra - é o pouco que sei, isso depois que Marta, minha esposa, encontrou a caderneta, no meio de uma papelada que ia para o lixo. A caderneta foi - felizmente - resgatada. Sorte! Na página 3 da caderneta a sua foto - de frente e de perfil - com 18 anos de idade, no ano de 1941. Ficou a curiosidade de saber mais, muito mais, sobre o marinheiro Edgard Vianna e suas 14 missões a bordo da corveta Jaceguai.

João Scortecci


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O LEITOR DE LIVROS E O LEITO DE MORTE / JOÃO SCORTECCI

O leitor de livros é um sujeito estranho. Diferente? Talvez. Esquisito. Fora do padrão. Algo assim. No dicionário, a palavra “padrão” significa “modelo a ser seguido”. Confesso: não gosto do seu significado. Acho maçante, tedioso e enfadonho. Meu avô paterno dizia, sempre: “’Quem balança o rabo é cachorro!”. Desconfio de tudo que é padrão, definitivo, fechado no quadrado. Mas a palavra padrão serve – na falta de outra melhor – para definir tudo que um leitor não é. Ponto. Salvei o arquivo na área de trabalho e lá ficou. Hoje, preparando uma apresentação para uma palestra na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), sobre o leitor de livros e o hábito de leitura, resgatei o texto. Quem guarda tem! Salvei-o do lixo! Resmunguei. Na verdade, foi ele – pacientemente – que me salvou. Estranho. Ou melhor: esquisito! Conheço leitores. Muitos. Minha profissão de editor e gráfico ajuda. Faz parte! Minha mãe Nilce foi a primeira leitora voraz que conheci. Minha avó materna, Maria Aparecida, um dia, contou-me o segredo: “Apagávamos as luzes do quarto e ela, escondida, acendia uma vela!”. Risos. Li e reli o que já havia escrito. Dá para aproveitar! Foi o que fiz e aqui estou. Nas duas últimas bienais do livro de São Paulo (2024) e do Rio de Janeiro (2025), o público compareceu, prestigiou e entrou, literalmente, na fila de autógrafos. Ambas foram um tremendo sucesso! Um amigo livreiro, no pé do ouvido, confessou: “Já imaginou esse público todo visitando as livrarias?”. Risos. Seria o máximo, sussurrei pensativo, algo fora do padrão! Aqui com os meus encadernados: por que esse público todo de leitores, compradores de livros, não frequenta as livrarias? Mistério. Juro que não sei. Já escutei mil explicações, mas, até agora, nenhuma razão fora do padrão. Fechei, então, o arquivo e o abri novamente. Releitura. Corrigi um erro de espaço, apaguei um trema que não existe mais e me perdi, no silêncio das razões, refletindo sobre o que o amigo livreiro havia me dito ao pé do ogro das palavras. O leitor de livros é um sujeito feliz e estranho. Acende velas, conversa com o imaginário e – vez por outra – dorme amasiado com um livro no leito de morte. 

João Scortecci

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GONÇALVES DIAS: EM CISMAR - SOZINHO - À NOITE, ONDE CANTA O SABIÁ / JOÃO SCORTECCI

O poeta e acadêmico Antônio Gonçalves Dias (1823 - 1864), autor do poema “Canção do exílio”, morreu aos 41 anos de idade, em um naufrágio do navio Ville Bologna, na baía de Cumã, município de Guimarães, no estado do Maranhão. Gonçalves Dias foi um ávido pesquisador das línguas indígenas e do folclore brasileiro. Formou-se em Direito (Coimbra, Portugal), retornando ao Brasil em 1845, após bacharelar-se. No exílio escreveu o imortal poema “Canção do Exílio”: “Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar – sozinho – à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras; Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho – à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que eu desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.” O verso mais bonito - no meu entendimento - de "Canção do Exílio" é desconhecido da grande maioria das pessoas: “Em cismar - sozinho - à noite”. Gosto da imagem: Ficar absorto em pensamentos – na solitude, no isolamento voluntário - e ser, lentamente, devorado pelo canto do sabiá que habita o abacateiro do meu tempo. É o meu cismar! E, no coração da noite, naufrago sonhos em Cumã, no exilo de poeta de mim mesmo.

João Scortecci


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O POETA HERMANN HESSE E O ANZOL NA GOELA / JOÃO SCORTECCI

O poeta e escritor suíço-alemão Hermann Hesse (Hermann Karl Hesse, 1877 - 1962) foi o escritor de “cabeceira” nos anos 1970. Primeiro foi “O Lobo da Estepe”, depois “Sidarta” e “Demian” e por fim, “O jogo das contas de vidro”, seu último livro. Depois do sucesso do romance "Peter Camenzind" (1903), sobre a vida de um escritor falido, sua carreira decolou.  Hesse foi livreiro durante cinco anos - até 1904 - e em 1946, recebeu o Prêmio Goethe e o Nobel de Literatura. Em 1911 esteve na índia e em 1922 publicou Sidarta, sobre a vida de Buda: busca pela iluminação e plenitude espiritual. O livro, na época, mexeu profundamente comigo e a obra, hoje, faz parte da minha lista dos livros imortais. O poeta Hesse é no Brasil pouco conhecido. Relendo sua biografia encontrei o algo do hoje: “Hora após hora eu ando agora, e em minhas faces, em fogo sinto os ventos de um distante verão; vocalizo canções de quando era rapaz, penso na pátria - e sei que não a encontro mais.” No poema “A morte a pescar de anzol” o sofrimento de um povo: “Senta-se a Morte e vai pescando-nos da vida com sua linha torpe, invisível e fina. Não há truque ou esforço que nos valha mais: ela tem paciência e uma isca que fascina. Quem cai no seu anzol, pode cavar na areia ou no lodo, ou tentar qualquer manha mesquinha: senta-se a Morte nele, e não mais lá na beira. Está perdido, mesmo que arrebente a linha. Pode, numa escapada, no fundo revolto longo tempo esconder-se ainda com medo dela: para finar-se, está completamente solto. Nada tem gosto mais: o anzol pegou na goela.” Hermann Hesse - escritor de cabeceira dos anos 1970 - faleceu no dia 9 de agosto de 1962, na cidade de Montagnola, Suíça, aos 85 anos de idade. 

João Scortecci

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O TRAVESSÃO E O SINAL DA BESTA / JOÃO SCORTECCI

O travessão é um sinal de pontuação. Uma ponte! Representa conexão, superação de obstáculos, encontros. Simbolismo de desejos, sonhos, possibilidades. Segundo o mestre Evanildo Bechara (1928–2025), autor da "Moderna Gramática Portuguesa" ele serve para substituir vírgulas, parênteses, colchetes, assinalar uma expressão intercalada, indicar uma mudança de interlocutor num diálogo — ou denotar uma pausa forte. Mil e uma utilidades! Eu uso e abuso — exageradamente — dos travessões. Gosto deles! Andei conferindo as minhas poesias e os meus últimos textos — de 2022 pra cá — e notei que eles — os travessões — fazem parte da minha escrita diária. Minhas crônicas, na maioria, publicadas nos volumes da coleção “Menino tipográfico e outras histórias” estão repletas de travessões, de dois pontos, interrogações e exclamações. Uso, cada vez menos, parênteses — mais em datas de nascimento e morte —, nada de divisão em parágrafos, nada de ponto e vírgula e nada de reticências. Lendo sobre Inteligência Artificial — sobre a marca da besta — dos rastros deixados pelos robôs, o travessão — ele mesmo — está na berlinda. Diz a matéria: “Usuários experientes, estudiosos, que conhecem e usam a ferramenta, afirmam que o travessão seria um sinal claro de que um texto foi escrito por um ‘chatbot’“. Afirma, ainda, que as ferramentas tendem a usar frases de transição como “além disso”, “por outro lado” e “em conclusão” de forma sistemática e padronizada. Listou, por fim, 13 itens — dicas relevantes, talvez — a serem observados. São elas: “Ausência de opiniões ou ponto de vista, formalidade excessiva, tom consistente e impessoal, excesso de polidez, estrutura previsível, frases muitos longas, poucas variações e repetições de palavras, falta de erros gramaticais naturais, ideias repetidas, falta de profundidade em tópicos mais complexos, uso de exemplos genéricos e desconexão cultural e contextual.” Ponto. Aqui com os meus travessões, com as minhas travessias, as minhas ilhas, que povoam o meu universo de estrelas: assim fica difícil navegar! Pergunta: “É preciso?” No rádio, o jornalista esportivo Dirceu Marchioli — o Dirceu Maravilha — resfolega: “Eu quero é mais!”. Gosto dele: mesmo sendo um corintiano — sem H. Volto, então, para o travessão, para o sinal da besta. Além disso, por outro lado, em conclusão, respondo-me: viver não é preciso? 

João Scortecci  

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QUASE 70 ANOS / JOÃO SCORTECCI

Mário, meu querido credor: de Andrade. De quanto anda a minha dívida com você? Impagável, eu sei. Não custa perguntar. Devo e não nego. Na adolescência fui Lira Paulistana. E vez ou outra: um verdadeiro Macunaíma! Na Pauliceia - desvairadamente - contei meus anos e descobri que tenho menos tempo para viver a partir daqui, do que o que eu vivi até agora. A vida é veloz! Você me disse, um dia: não devemos servir de exemplo a ninguém. Verdade. Mas podemos servir de lição! Somos um poço infinito de mentiras, medos, tentações, frustrações e dor. Muita dor. Viu que não uso aspas no texto? Tudo teu mesmo. Hoje, completo – quase – setenta anos de idade. Sinto-me como aquela criança que ganhou uma cesta de brigadeiros de chocolate: feliz e desconfiada, com os mistérios do futuro. O primeiro brigadeiro eu comi com prazer, com gula, gosto e assim foi. Um depois do outro. Descobri, com o tempo, que restam agora, poucos brigadeiros na cesta que é a vida. Eu sei: nada nela é inesgotável. Passei, então, a saboreá-los lentamente, com amor, gozo e reservas. Gosto da solitude da - quase - velhice. Escrevo e faço o que gosto: e nada mais! Não faço o que não quero. Simples assim. Não tenho tempo e nem paciência para os chatos, os grudentos e os babacas. Cansei? Não. Nós temos duas vidas e a segunda começa quando você percebe que você só tem uma. Viu que continuo não usando aspas no texto? Tudo teu mesmo. 

João Scortecci

 


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1976: O ANO QUE – AINDA – NÃO TERMINOU / JOÃO SCORTECCI

Sonho é sonho. Interpretá-los – com discernimento – não é fácil. Capacidade para poucos! Descarto aqui, para não polemizar e não contaminar o texto, os sonhos espirituais, as visões, os chamados, as revelações e as manifestações da alma. Escrevo para registrar um sonho que – vez por outra – ocupa-me o espírito. Pesadelo? Talvez. Sonho que vem e vai e nunca sai da cabeça. Dizem – os entendidos – que sonhos que se repetem são alertas e avisos de coisas que deixamos em aberto, não encerradas ou ainda, assunto por resolver em nossas vidas. Vamos, então, ao sonho “repeteco”. No ano de 1976, fui convocado para o serviço militar obrigatório. Tinha 20 anos. Servi no 2º Batalhão de Guardas, na Companhia de Comando e Serviços (CCSv), Pelotão de Transportes, no Parque Pedro II, em São Paulo, Capital. Fui, durante 1 ano, o SD 1148. Orgulho-me em dizer que fui um soldado exemplar, não tive “alterações” e recebi, quando dei baixa, diploma de Honra ao Mérito. O BG não existe mais, foi extinto em 1992 e hoje, o prédio está abandonado e em ruínas. O BG tinha um lema: “A Guarda morre, mas não se rende!”. Impossível esquecer o significado desse “ideal” que marcou profundamente a minha vida. Talvez explique o sonho “repeteco” de jamais me render, mesmo que o preço seja a morte. Vamos, então, ao sonho: O telefone toca. Eu atendo. Recebo o aviso que fui “reconvocado” e que devo me apresentar no quartel, imediatamente. Explico tratar-se de um engano, que já servi, cumpri minha obrigação cível etc. “Apresente-se!". Insisto e digo que já não sou jovem, estou perto dos 70 anos, não tenho mais a força de um leão, olhos de lince e, mais do que tudo, sangue nos olhos. Não adianta. “É uma ordem!” Desligo o telefone, visto a farda verde oliva, calço as botas, alimento o meu FAL – fuzil automático leve – e me apresento, pontualmente, no 2º Batalhão de Guardas, no Parque Pedro II. Encontro o quartel igual ao que era no ano de 1976, imponente e invencível. “Eu já servi!” Apresento meu certificado de reservista, minha carteira de motorista militar, o meu diploma de Honra ao Mérito, algumas fotos, mas de nada adianta. Vejo-me novamente de serviço no P-5, portão do pelotão de transporte, falando no rádio comunicador, trocando o óleo da viatura, faminto e selvagem, rastejando na pista “Cascavel” – cujo lema é “Quem erra deve, quem deve paga, quem paga, paga na hora!" –, no QG do II Exército, no Parque do Ibirapuera, no bandejão do quartel, comendo picadinho de carne e chupando laranja, no desfile militar de 7 de setembro, na Avenida Tiradentes, dirigindo o Jeep do Tenente-Coronel Pedro Luís da Silva Osório, que resfolega, com o canto dos dentes e fala: “Soldado, não deixa o motor da viatura morrer!” “Puxa o afogador!”. Acordo. Sonho maluco. Sempre o mesmo. O que muda - as vezes - é a ordem dos acontecimentos. Num dos muitos sonhos, pergunto ao 1º Tenente Biagio, comandante da minha companhia, hoje general aposentado: “Comandante, por que fui reconvocado? Ele, então, me olha nos olhos e responde: “Soldado, a guarda morre, mas não se rende!”. Hoje, quase 50 anos depois, “não me rendo” e “não me deixo morrer”, aguardando, então, minha última missão, o inventário das coisas que deixei em aberto, não encerradas, ainda por resolver, pendentes no tempo, do incrível 1976, ano que - ainda - não terminou.

João Scortecci


 

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O VOO SEM FIM DE SAINT-EXUPÉRY / JOÃO SCORTECCI

O escritor, ilustrador e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry (Antoine-Marie-Roger de Saint-Exupéry, 1900 - 1944) visitou o Brasil, como piloto da Aéropostale, hoje Air France, por três vezes, pousando o seu aeroplano no campo do Campeche, sul da ilha de Santa Catarina. Isso no início do século XX, entre 1929 e 1931. Saint-Exupéry ajudou a implantar rotas de correio aéreo na África, América do Sul e Atlântico Sul, além de ter sido pioneiro nos voos Paris - Saigon e Nova Iorque - Terra do Fogo. Em maio de 1940 - com a invasão dos nazistas na França - fugiu para os Estados Unidos. Em 1943 escreveu seu livro mais importante “Le Petit Prince” (“O Pequeno Príncipe”), uma fábula infantil para adultos, obra rica em simbolismo, com personagens como a serpente, a rosa, o adulto solitário e a raposa. A história começa com o narrador descrevendo suas recordações aos 6 anos de idade, quando fez um desenho de uma jiboia que havia engolido um elefante. Quando perguntava o que os adultos viam em seu desenho, todos eles achavam que o garoto havia desenhado um chapéu. O personagem principal do livro é um principezinho, que vivia sozinho num planeta pequenino, onde existiam três vulcões, dois ativos e um já extinto. É uma das obras mais traduzidas no mundo - perto de 220 idiomas - com 145 milhões de exemplares vendidos, sendo 2 milhões deles no Brasil, desde 1952. Para milhões de leitores e admiradores da obra “O Pequeno Príncipe” a mensagem mais significativa de todas: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”. No dia 31 de julho de 1944, Antoine de Saint-Exupéry partiu de uma base aérea na Córsega - quarta maior ilha do mar Mediterrâneo e a maior ilha da França - e não retornou. O seu avião um Lightening P-38 despareceu no mar. Provavelmente tenha sido abatido. Seus restos mortais jamais foram encontrados. Ele tinha 44 anos. Eu - nas muitas releituras da obra - me perco, sempre, na imagem da jiboia engolindo um elefante: “O essencial é invisível aos olhos.”.

João Scortecci


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