Hoje recebi um e-mail dizendo que fulano de tal, autor com livros publicados pela Scortecci, havia falecido. Desconhecia a informação. Pedi, então, que a logística da editora verificasse a informação. No corpo do e-mail estava escrito: ”Fiquei sabendo que fulano de tal morreu. Vocês teriam o novo contato dele?” Novo contato? Pensei em responder: “Novo endereço do Céu ou do Inferno?”. Desisti. Falta de respeito. Resolvi, então, perguntar para o OpenAI GPT-5. Segue resposta da Inteligência Artificial: “Acho que houve um mal-entendido: se ele faleceu, não há novo endereço. Você quis dizer o endereço da família ou onde será o velório?“. Interessante. Encontrei - creio - alguém com juízo, com a cabeça no lugar! Qual a ideia: Toda pergunta doida ou maluca que chegar agora na editora, antes de responder qualquer besteira ou bobagem, vou primeiro consular o OpenAI GPT-5. No final do dia a verificação chegou: O autor, infelizmente, havia falecido. O OpenAI GPT-5 já sabia. Disse-me: “Quer que eu adapte alguma dessas opções para um tom mais formal ou mais coloquial, ou que eu escreva uma resposta direta para você enviar?” Escrevi: “Sim. Quero.” O OpenAI GPT-5 enviou então cinco resposta. Escolhi a última: “Sinto muito. Quer que eu confirme a informação e veja se há dados do velório ou contato da família? Posso checar notícias e posts oficiais.” Posts oficiais? E o OpenAI GPT-5 enviou o post oficial do dia do sepultamento feito por uma empresa que comunicava o velório e gentilmente oferecia coroas de flores. Detalhe, insignificante, talvez: O retrato do autor no post comunicando o velório e oferecendo coroa de flores era o mesmo da orelha do seu último livro. Fica a lição: enviem, sempre, fotos perfeitas, com boa resolução e com aquele sorriso maravilhoso. Nada mais escapa: morrendo e aprendendo!
João Scortecci
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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: MORRENDO E APRENDENDO!
GUTAÇÕES DO VERDE
Eu e as folhas verdes do jardim. Gutações! Lâminas perfiladas desenhando perfis, cheiros, formas de amor e tecidos de pele. Corpo que lê. Páginas lidas. Nuas: no ar de gotas e salivas! Corpo de folhas, natureza selvagem e dor, na relva de um dia de sol. Releitura: de moça que lê. Eu a observo, assim, pausadamente: de cocar na cabeça, cotovelos plantados no dorso da terra, seios miúdos, ilhados. Observo, ainda, um fio magnético – imaginário, talvez - na sua cintura de mulher, no cio. Pergunta: Quem - também - nos olha? No laço do segredo: um cordão sensual de papel. Úmido. Páginas de diário? Segredos? Brevidades! Tempo polinizado que lê corações, possibilidades, ocupando-se de mim: frágil e mortal. Gutações de poeta e nada mais.
João Scortecci
JUDAS E A MALHAÇÃO DO HOMEM BOMBA
Papai Luiz acendia o pavio com o cigarro da boca do Judas e gritava: "Corram que o papoco vai ser grande!" Corríamos todos: até o tronco da imensa amendoeira-da-praia. Lá - no dorso mágico do chapéu-de-sol, estávamos seguros. E o Judas, o Iscariotes, voava aos pedaços: papocava! Papai Luiz e meu tio Mário Capelo, eram os responsáveis pelo fogaréu. Bombas rasga-lata na cabeça, na barriga, nos braços, nas pernas e nas calças do Judas. O pavio do estopim ficava na boca, na língua escarlate do Judas. Bastava acender o cigarro continental sem filtro e esperar queimar até o cotoco. Mamãe Nilce e tia Lenira, cuidavam do Judas: enchimentos, maquiagem, roupas, chapéu e sapatos. E nós: da gritaria! A "Malhação de Judas" é uma tradição popular, trazida pelos colonizadores espanhóis e portugueses, que acontece nos sábados de Aleluia, que se resume em surrar – com pau de vassoura e bambu - e depois atear fogo, pendurado num poste ou num pau de sebo, um boneco, que representa a figura do Judas Iscariotes, que traiu Jesus, conforme narrado nos Evangelhos do Novo Testamento. Com o tempo, além de Judas Iscariotes, a malhação passou a contemplar também políticos mentirosos, traidores, enganadores do povo. Na infância, gostávamos da farra, do fogaréu, quase sempre na “Casa da Floresta” dos meus tios Mário Capelo e Lenira, no Ceará dos anos 1960. Antes de detoná-lo aos céus, rezávamos pela sua alma pecadora, tirávamos fotos, servíamos café, tapioca e bolo de milho. Parte do ritual de morte. E ele, Judas, indiferente, aguardava o trágico.
João Scortecci
NAVIO NA GARRAFA NO RIO DA BOCA DO ANZOL
Uma história de marujo. Era jovem, quase um menino. Nasci na boca do Rio do Anzol, que, feroz e afoito, afogava-se – dia e noite – na imensidão do mar das garrafas. Escrevi o bilhete à mão. Lápis e papel. Dois poemas de amor, uma graça de dor – temporal – e uma despedida de fim. Tapei a garrafa com rolha de cortiça e nadei junto, lado a lado, até o encontro profundo das águas do mar. Parei. Impossível ir adiante, vencer o vento, o cansaço e a correnteza das almas. Exausto, abandonamo-nos à deriva, na direção do destino incerto. Disse, então, para as águas: Segue e vai. Inglória – nome do amor escrito no bilhete da garrafa – nunca soube dos poemas que lhe enviei e nem do ácido – amargo – das palavras seladas no dorso do navio na garrafa. Nunca! Inglória não era mulher da boca do Rio do Anzol. Tinha vindo de outro mundo: da cidade grande. Não tragava cachaça, não cuspia farinha nas águas do mar e não mastigava tripa de boi. Não era do dia qualquer – das tardes ingênuas – e nem dos pecados do corpo nu. Um anjo torto, de asas. Era barro – trincado – dos infernos. Chegou com a maré alta, em dia de lua cheia. Azeda, bela e cruel. Não sabia fazer danação, brincar de beijo estralado, chorar por qualquer aventura, rir por rir, desbragadamente, molhar os pés de sal nas águas do mar e nem gritar de amor, no silêncio do gozo da ponta da praia. Inglória sabia das coisas da cidade grande e nada mais. Jamais havia pegado caranguejo na boca do Rio do Anzol. Veio da dor, das linhas rabiscadas na folha de papel, do lápis de ponta quebrada e do azedo do sangue ferido. Veio e se ocupou de mim. Ficou cunhada no sono ruim, no pesadelo da ressaca das águas da morte. Inglória não era nascente. Não desaguava, nunca! Nem urinava na beira do rio, nas tardes quentes do verão. A garrafa, então, precipitou-se pela última vez, mar adentro, na direção do cemitério de corpos. Lembro-me do vento forte que soprou no delírio da partida. Intenso e biruta: tomando rumo na direções do fim. O tempo havia virado! O mar é um desejo impreciso! Lembro-me dos cardeais – dos versos – dos poemas. No primeiro – curtíssimo –, falava do eu náufrago, e, o segundo, da vida que foi sofrer de amor na boca do Rio do Anzol. E a garrafa - então - sumiu de vez, no longe dos olhos e do tempo.
João Scortecci
O CEARÁ DO MAR E DO MUCURIPE
No ano de 2011 revisitei o Ceará. Vou lá – vez por outra – e me abraço. Eu menino, danado, feliz, navegando num pé de goiaba. Nau do latifúndio da Vila de Santa Teresinha. Baladeira no pescoço, sandálias havaianas, óculos fundo de garrafa e arraia com cerol, nos olhos do sol. Imensidão. Visito os mesmos lugares de sempre: minha casa, que não existe mais, as ruas da infância, o Colégio Cearense, a Praça do Ferreira, o Mercado São José, a Praça dos Leões, Parque Cidade da Criança, Igreja do Coração de Jesus, as águas de Aquiraz, o riacho Pajeú, hoje canalizado, o farol do Mucuripe e o mar, o imenso mar. Tempo maior para os amigos que ainda estão por lá. Levo comigo - sempre - a última versão do livro Na linha do Cerol - e nossas reminiscências. É o que faço. Tempo para o Dragão do Mar, Frei Ambrósio, Pombo Branco, Feijão sem Banha, Chico da Silva, Irmão Urbano e Outros. E muitos outros: todos lembranças! Desta última vez estive também com o poeta do povo, o Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva, 1909 - 2002). Lembro sempre do seu poema "Triste Partida", musicado e gravado pelo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Primeiros versos: ”Setembro passou / Outubro e novembro / Já tamo - quase - em dezembro / Meu Deus, que é de nós (Meu Deus, meu Deus)...”. Tudo verdade. Confesso: Não sei quando volto por lá. Quem sabe? Ninguém. Pergunto: Ainda gosto do bicho da goiaba? Respondo: E de farinha também! Isso basta? Talvez. Assaré voa e voa no tempo.
João Scortecci
NÃO TRAGO NADA, NADA MAIS QUE A MINHA POESIA / JOÃO SCORTECCI
Já pratiquei heteronímia. Aqui confesso, sem medo ou vergonha. Deixei de ser réu primário ainda na adolescência e já tenho – quase – 70 anos. Eu o matei sem dó. Foi no braço. O moço – bem mais jovem do que eu – andava chato, fazendo muitas perguntas, tirando o meu sono, querendo atenção além da conta. Um literato intruso. Eu então – numa manhã de sol escaldante – esfolei-o vivo. Bati sem dó. Heterônimos nunca mais! Ele se chamava Ricardo Porto. Era popular nas redes sociais, tinha perfil, e-mails e até biografia. Os heterônimos literários constituem uma personalidade: conjunto complexo e único de características psicológicas que definem como uma pessoa pensa, sente e age, influenciando sua individualidade e as interações com o mundo. Antes de matá-lo – indeciso, talvez – escrevi para o Fernando Pessoa e perguntei sobre sua relação íntima com o Álvaro de Campos. Não deveria: eu sei. Depois que enviei a missiva, arrependi-me, profundamente. Feito estava! Ando lendo o livro “Deixa pra lá - A teoria 'Let Them' ” (Robbins, Mel e Robbins, Sawyer, Best Seller, 2025) e lá aprendi como parar de desperdiçar energia com o que está fora do meu controle e redirecionar o foco para o que realmente importa: Eu! Matei-o, então. A resposta de Pessoa – improvável – chegou. Um bilhete: “Fui como ervas, e não me arrancaram.”. Assinado A.C. Levei o bilhete – e o envelope junto – para uma amiga que conhece profundamente a obra de Fernando Pessoa. Ela olhou, cheirou a carta, o envelope, consultou a caligrafia, o remetente e sentenciou: “Quem escreveu o bilhete não foi o Pessoa, foi o Álvaro de Campos!”. “Isso é possível?”, quis saber. Minha amiga – que pediu para não ser identificada – respondeu: “Sim”. A heteronímia é uma doença cruel, perversa, maligna. Foi até a estante e trouxe o poema abandonado em viagem: “Venho dos lados de Beja. / Vou para o meio de Lisboa. / Não trago nada e não acharei nada. / Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, / E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro. / Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: / Fui como ervas, e não me arrancaram.” Viu e disse: “No momento de responder a sua carta, Pessoa estava possuído, tomado, abduzido. Foi o Álvaro de Campos que assinou a carta!”. Sorte a minha: matei Ricardo Porto sem dó, no melhor do sol escaldante. Digo sempre: venho dos lados do Ceará. Não trago nada, nada mais que a minha poesia. E chega!
João Scortecci
HERENÇA DIGITAL E OS CARROS VOADORES
A vida anda mesmo imaterial! Sinto-me enganado. Explico: quando criança, isso nos anos 1960, me convenceram: no futuro o mundo vai viver em paz, sem guerras, doenças, poluição, fome, e as pessoas do bem vão trabalhar no máximo 4 horas por dia! Os carros serão voadores, não existirão mais assaltos, roubos, nem políticos bandidos. Tudo automático! Algo assim. Juro: eu acreditei! Era a época do “Os Jetsons”, na TV, desenho animado com as aventuras de uma família que vivia no futuro. Não perdia um episódio! Hoje trabalho 12 horas por dia, acordo às 5 da manhã, não tenho carro voador, ando fugindo de bandidos, ladrões e safados. Até aí nenhuma novidade. Deixa pra lá! Deixei. Mas a pergunta veio de surpresa e me pegou pelo fígado: “E a herança digital da Scortecci?”. Gelei. Listei, de cabeça, em segundos, tudo: livros raros, milhares de fotos, originais, desenhos, gravuras, quadros, cartas, textos, autógrafos, biblioteca, selos, contas de e-mails, sites, blogs, domínios, revistas, vídeos, documentos... “Não sei”, respondi. Herança digital é o conjunto de bens e conteúdos digitais de uma pessoa, de uma empresa, como contas em redes sociais, arquivos, senhas, que são transferidos aos herdeiros após o seu falecimento. Este “patrimônio digital”, que pode ter valor econômico ou afetivo, ainda não tem legislação específica no Brasil, e a sua transmissão é regida por entendimento jurisprudencial e por disposições deixadas em testamentos. Algo assim. A maioria desses bens são incorpóreos – não têm existência física – e outros, como o acesso a informações pessoais, são considerados direitos personalíssimos, o que pode gerar conflitos. A vida anda mesmo imaterial. Tudo culpa dos Jetsons. Confesso: deveria ter ficado – apenas – nos episódios dos Flintstones, família da idade da pedra, seriado da TV da mesma época. Vou-me embora pra Bedrock: andarei de bicicleta, montarei em burro brabo, subirei no pau-de-sebo, tomarei banhos de mar! E, na hora do grito poético, do poema sem-fim: Yabba dabba doo!
João Scortecci
FERNANDO SABINO, SELLERS, CHAPLIN E TODAS AS GARGALHADAS SUBITÂNEAS / JOÃO SCORTECCI
O escritor mineiro Fernando Sabino (1923 – 2004) um dia me disse: “Gosto de quem gosta de mim”. Adotei a sina e, desde então, pratico a máxima, com simpatia – e desavisado de tudo. Sofre-se menos, ama-se mais! Gosto das pessoas que me fazem rir, desbragadamente. Rir, rir mesmo. Admiro as pessoas engraçadas – por natureza ou espírito – e, por empatia, as almas carrancudas, sisudas, mal-humoradas que, do nada – de pá e lua – ou por um toque qualquer, caem no gargalhar incontrolável. Dois comediantes – ambos ingleses – são referências do riso. Peter Sellers (Richard Henry Sellers, 1925 – 1980) e Charles Chaplin (Charles Spencer Chaplin, 1889 – 1977). No filme Being there (Muito além do jardim ou O Videota), de 1979, com roteiro de Jerzy Kosiński , Peter Sellers me faz, até hoje, urinar nas calças, literalmente. Chaplin é o maior de todos e, até hoje, o melhor das risadas inesperadas. Destaque para os filmes: O garoto, Luzes da Cidade, Tempos Modernos, Luzes da Ribalta e, o melhor de todos: O grande ditador. Chaplin faleceu em 25 de dezembro de 2004, no dia de Natal, aos 88 anos de idade, na Suíça. Em março do ano seguinte, seu cadáver foi roubado da sepultura, com caixão e tudo. Dois meses depois, uma grande operação policial capturou os criminosos e também o caixão, encontrado enterrado num campo em Noville, perto do Lago Léman, na França. Charles Chaplin considerava o cinema uma arte essencialmente pantomímica: teatro gestual que faz o menor uso possível de palavras e o maior uso de gestos, expressões faciais e movimentos corporais, por meio da mímica. É a arte de narrar com o corpo. Minhas gargalhadas – as inesperadas – são assim: imprevistas, repentinas, inopinadas. E, vez por outra: subitâneas!
João Scortecci
INTELIGÊNCIA ANCESTRAL
São Paulo do dia 7 de setembro amanheceu um vazio de carros e pessoas. A lua vermelha do céu se foi com o agosto da secura e o grito de cachorros loucos. É pátrio. Gosto e não gosto do agito. Alimento-me, então, com pão de padaria, ovos mexidos e um pingado paulistano. Parei nos faróis de sempre: aqueles de todos os dias. Foram lentos - demorados - além da minha conta. Minhas máquinas de pintar papel me chamam repetidas vezes: capas, contracapas, orelhas, lombadas, cores, nomes, títulos e subtítulos. Existe uma dobradura que me acalma o coração: a flor de um poema. Meu espírito ancestral, escondido nas lembranças da alma. No equilíbrio do silêncio: eu respiro! Existem múltiplos caminhos dentro da teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner. Escolho, então, cinco delas: linguística, espacial, corporal-cinestésica, intrapessoal e existencialista. Falo com o coração, navego nas estrelas, descanso os dedos dos pés, respiro cheiros e existo. Cada uma delas representa um conjunto distinto de habilidades e aptidões, evidenciando que a inteligência é multifacetada e não pode ser medida por um único fator. Inteligência ancestral, que pertence aos antepassados: antigo e remoto. Presentes no móvel da sala, nos porta-retratos e no tempo. Minha face, meus olhos, meus dedos, minhas pernas, meu conformo angular, no silêncio voraz do jardim do ipê-amarelo.
João Scortecci
SACI PERERÊ DE DUAS PERNAS
A Região das Missões é uma região localizada no Noroeste do Rio Grande do Sul, que preserva os vestígios das missões jesuíticas-guaranis dos séculos XVII e XVIII. O nome Missões deriva do fato de que nessa região foram edificadas as chamadas reduções jesuíticas, comunidades criadas com o objetivo de converter os indígenas ao catolicismo. Eram comunidades autossuficientes, que desenvolviam agricultura, pecuária e artesanato. As reduções tiveram um papel importante na história e no progresso do Rio Grande do Sul. Saci-Pererê - personagem do folclore brasileiro - tem sua origem na Região das Missões, entre os indígenas. A figura do saci surge como um ser maléfico, brincalhão, que gosta de se divertir fazendo travessuras com as pessoas. Saci-Pererê é um jovem negro, de uma só perna, portador de uma carapuça sobre a cabeça, que lhe concede poderes mágicos. Hoje de madrugada, escutando radinho de pilha - fiquei sabendo que - provavelmente - Saci Pererê nasceu com as duas pernas. Acordei de vez. Confesso: nunca havia pensado nisso! Pesquisando na Internet descobri que existem duas versões: ter perdido numa luta de capoeira ou, em outra versão, ter sido um menino escravizado que se corta - após ser acorrentado - para fugir e ganhar a sua liberdade. Fico com a segunda! Não consigo imaginar Saci-Pererê - palavra tupi, do termo "pererek-a", que significa "ir aos saltos" - pulando com duas pernas. Perde a graça, a mística, os poderes, algo assim. Desisti. Lendo sobre a Região das Missões cheguei até o Tratado de Madri, assinado em 13 de janeiro de 1750, entre Portugal e Espanha, acordo diplomático que visava definir os limites das colônias ibéricas na América do Sul, estabelecendo as fronteiras aproximadas do Brasil atual e substituindo o obsoleto Tratado de Tordesilhas. Interessante! Estou lendo agora sobre o princípio do “uti possidetis”, que determinava que a posse de um território seria baseada em quem o ocupava de fato. Chega! Vou para as notícias do futebol. Olho sempre notícias do Palmeiras, do Fortaleza, do Botafogo e do Internacional, times do coração. Salve! Agora eu sei o porquê do time do Sport Club Internacional andar ruim das pernas. Perdão pela comparação. Piada ruim. É que o Saci-Pererê é mascote do time e futebol é assim mesmo: vive aprontando!
João Scortecci
FALTOU COMBINAR COM OS RUSSOS
Comer presunto - pela primeira vez na vida - e andar de bonde de graça! Foi o que aconteceu durante quatro dias na cidade de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte. Isso em 23 de novembro de 1935, quando, oficialmente, o estado foi popularmente “comunista”. Após um levante militar a capital potiguar caiu nas mãos de rebeldes que assumiram o poder com apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB), liderados pelo militar e político Luís Carlos Prestes (1898 - 1990), que - é o que dizem - foi pego de surpresa. Teria dito: “Ainda não é hora!”. Sob o lema "pão, terra e liberdade", os revolucionários almejavam dar o pontapé inicial para a instalação de um regime soviético no Brasil. Lendo sobre “os estratégicos” do levante: Tomar a central elétrica, a estação ferroviária e as centrais telefônica e telegráfica. Depois: Destituir o governador, dissolver a Assembleia Legislativa, criar uma nova bandeira com a estrela, a foice e o martelo, saquear os cofres da agência do Banco do Brasil, distribuir parte do dinheiro para “amolecer a barriga” do povo, distribuir bebida e presunto fresco e extinguir as tarifas do transporte público. E assim foi feito. O povo - desavisado de tudo - adorou as novidades e o levante - já no primeiro dia - virou uma tremenda farra potiguar: dinheiro, bebida, presunto fresco e transporte de graça! No quarto dia, numa quarta-feira, a vida voltou ao normal com a prisão do presidente do Comitê Popular Revolucionário, o militar do 21º Batalhão de Caçadores e músico, Quintino Clementino de Barros, pelas forças leais ao governo. Fim da farra! Dizem: "Faltou combinar com os Russos!" Frase atribuída ao jogador de futebol Mané Garrincha, na Copa de 1958. Diz a lenda que o técnico da seleção brasileira, Vicente Feola (1909 - 1975), havia bolado um esquema infalível para vencer a seleção Soviética, considerada, na época, invencível. Algo assim: Nilton Santos - lateral esquerdo - lançaria a bola para Garrincha, que driblaria três russos e cruzaria a bola para trás, pelo alto, na cabeça do Vavá, marcar o gol. Garrincha - depois de escutar Feola - que vez ou outra dormia no banco de reservas - teria perguntado ao técnico: “Tá legal, seu Feola, mas o senhor combinou com os russos?”. Um detalhe: A seleção Brasileira, naquele jogo da Copa de 1958, vencer a seleção Soviética pelo placar de 2 x 0, com dois gols de Vavá e Mané Garrincha, arrebentou no jogo: driblou três russos e cruzou a bola na cabeça do Vavá. Provavelmente - tudo muito bem combinado - com os Russos.
João Scortecci
BLACK FRIDAY E AS PANELAS DE PRESSÃO
Black Friday - Sexta-feira Negra, em português - é o dia que começa, oficialmente, a temporada de compras de final de ano, com promoções e descontos especiais em lojas varejistas, serviços e restaurantes. A data - 28 de novembro - começou nos Estados Unidos, um dia depois do Dia de Ação de Graças - Thanksgiving Day -, e hoje é compartilhada em vários países do mundo. A primeira Black Friday do Brasil aconteceu em 2010 - totalmente online -, e reuniu mais de 50 grandes lojas do varejo nacional. Lembro bem do acontecido e do reboliço que foi na cabeça das pessoas. Três colaboradores da editora me procuraram e pediram para que adiantássemos o pagamento do salário do mês. Qual a razão? Perguntei. Explicaram, então: "É a promoção Black Friday!" Estavam eufóricas. Autorizei, então, e fui procurar saber do babado, na época uma novidade. Descontaram o salário – na hora do almoço – e desceram a Rua Teodoro Sampaio na direção do Largo da Batata, em Pinheiros. Não demorem! Pedi. Pedido em vão, ignorado. Voltaram no meio da tarde, carregando sacolas e uma delas arrastando um imenso saco preto de lixo. "O que é isso?" Quis saber. "Panelas de pressão!" Respondeu. Dentro do saco contei 4 panelas de pressão, das grandes. Silêncio. "Sr. João, estava muito barato, quase de graça, não resisti e comprei!”. Surpreso, indaguei: "E o que você vai fazer com 4 panelas de pressão?" Ela me olhou, indecisa, talvez. “Não sei ainda!”. “Exagerei, né?”. Declarou. "E o seu salário do mês?" Insisti, preocupado. “Gastei tudo!” Não tinha notado - até então - a fileira de sacolas empilhadas na recepção da editora. Mais de 10 sacolas. “Sr. João, acho que vou precisar de um vale!”. É a lembrança que tenho na cabeça da primeira "Black Friday" brasileira, isso no ano de 2010. 15 anos de lá pra cá! Pesquisei na Internet o ano de 2010 e olha o que aconteceu na época: Copa do Mundo da FIFA, na África do Sul, Espanha campeã, Dilma Rousseff eleita presidente do Brasil; terremoto devastador no Haiti; resgate bem-sucedido de 33 mineiros no Chile; eleição de Barack Obama nos Estados Unidos e início do Estatuto da Igualdade Racial no Brasil. A gente esquece, né? Tudo coisa importante! E o que ficou de lembrança na cabeça? As 4 panelas de pressão e nada mais! Acontece.
João Scortecci
LENDO O POETA EDGAR ALLAN POE
Láudano poético: branco, açafrão, cravo, canela e ópio. Lendo sobre o romantismo sombrio – fascinação popular com o irracional, o demoníaco e o grotesco – e a obra do poeta Edgar Allan Poe (1809 – 1849), encontrei nota sobre o significado da palavra "embuste" ("hoax", em inglês): tentativa de enganar um grupo de pessoas, fazendo-as acreditar que algo falso é real. Os “embustes” estão na moda e parece que vieram para ficar, de vez, no novo normal. É possível perpetrar um “embuste” fazendo – somente e tão somente – declarações verdadeiras. Mentiras verdadeiras, algo assim. Embuste ou fake news? Segundo o “pai dos burros” a expressão “fake news” é usada desde o final do século XIX e se tornou popular em todo o mundo para denominar informações falsas que são hoje postadas, deliberadamente, nas redes sociais da Internet. Voltando ao Edgar Allan Poe e "O Corvo": "Senhor, por favor, ajude minha pobre alma”. Láudano para os ingênuos! Segue desafio: “Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo! E o corvo disse: "Nunca mais.” Pobre “corvo” de nós, pobre Poe, alma penada, de versos sombrios e corações frios: poesia, cravo, canela e ópio.
João Scortecci
SERAFINA, A ÚNICA
Serafina era uma gata. Aquelas de pelo, rabo peludo e vibrissas. Tinha cheiro de jasmim, presente de Deus. Surgiu no meio de um sonho confuso, cheio de labirintos, corredores e pirâmides. Egito, talvez. Acordei e ela estava inteira na minha cabeça. Ela e mais ninguém. Perguntei-lhe, então: Quem é você? Ela respondeu: "A deusa Bastet, o fogo puro!" Andou pelo quarto, espiou pela janela entreaberta, soltou um miado e desapareceu, misteriosamente. Sonho maluco! Não dormi mais. Sentei-me na cadeira do quarto e esperei pelo sol do dia. Serafina ficou inquieta, movediça, vagando dentro de mim. Bela, ardente, em chamas! Na noite seguinte Serafina voltou. Quem é você? Insisti. Foi quando ela me disse - finalmente - o seu nome: Serafina! Engraçado, pensei: eu já sabia! Como? Não sei. E repetiu: "A deusa Bastet, o fogo puro!" Explicou: "Eu venho de dentro de você, das suas entranhas, das suas tripas, da sua alma." Gelei. Seria a morte? Talvez. Serafina esfregou-se na minha perna, andou pelo quarto, subiu na janela e me trouxe de presente uma lagartixa morta. Colocou-a no meu colo e subiu no alto da estante de livros. Ficou por lá, com o rabo abanando a capa do livro "O Segredo", da escritora australiana Rhonda Byrne. Dormi, exausto. Acordei e Serafina havia sumido. Retirei o livro da estante e li partes, pequenos trechos, pedaços. Pesquisei sobre Bastet, filha do deus-sol Rá, deusa associada à fertilidade, música, dança, amor e proteção. Esperei por ela mais outras noites, mas ela misteriosamente não veio. Na verdade nunca mais voltou. Coloquei a lagartixa morta num saco plástico e a joguei no lixo. Foi na vida a única Serafina que conheci, a gata que tinha cheiro de jasmim. Bela, ardente, em chamas! Hoje reli o livro O Segredo. Inteiro. Serafina estava lá, esperando por mim. Disse-lhe: Demorei, né? Serafina, então, vibrissou-se. Fogo puro, Bastet, imensidão: até o céu.
João Scortecci
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FILOMENA, A JABOTA PIRANGA / JOÃO SCORTECCI
Já criei uma jabota. Criamo-nos! O quintal lá de casa no Ceará dos anos 1960 e 1970, era de meio quarteirão, somando as quatro casas da Família Paula, batizadas de Vila Santa Terezinha, santa de devoção e muita reza da minha avó paterna Sarah do Carmo. A jabota aparecia no latifúndio na época do círculo das águas - inverno no Ceará - e sumia do mapa no calor do verão. Foi assim durante anos. Mudei-me para São Paulo em 1972 e a moça da carapaça ficou por lá, esquecida em algum lugar do passado. Hoje a Vila Santa Terezinha não existe mais, virou um grande estacionamento de propriedade do Banco Central do Nordeste. Filomena, a jabota, era uma legítima “piranga”, heroína silvestre do folclore indígena. Diz à lenda que no dorso da sua carapaça - inviolável - moram os segredos e os sonhos místicos da floresta. Iara, senhora das águas, dorme - todas as noites - na carapaça de uma jabota, protegida da mula sem cabeça, do anão curupira e do lobisomem das luas. Saci Pererê, menino alegre e peralta, quando a mata arde e queima, deita-se na relva para escutar os conselhos sábios do um velho Jabuti. E juntos, choram a dor da vida. Boitatá, cobra de fogo que protege a floresta da desgraça humana, é irmã do bem. É ela quem primeiro alerta a bicharada do perigo do fogaréu. O boto-cor-de-rosa, diz a lenda, se transforma num homem charmoso e sedutor, frequenta bailes e festas nas margens dos rios da Amazônia. Disfarçado com roupas brancas e chapéu feito do couro de jabota, seduz as moças solteiras, as leva para o rio, as engravida e depois desaparece na noite escuta. Até a Cuca, bruxa má, que sequestra e come crianças que desobedecem a seus pais respeita os jabutis. Isso tudo depois de lembrar - do nada - do anjinho de gesso que a professora Rosa me deu de presente no aniversário de 8 anos, quando ainda era menino de tudo. Ela com um beijo, disse-me: "Coloque o anjinho na cabeceira da sua cama, junto com a jabota Filomena! Foi o que fiz. Hoje, nos meu sonhos de criança, sempre, pergunto por eles. É quando, então, penso nas sazonalidades que é a vida.
João Scortecci
GARIBALDI, ANITA, GEROLAMO E O RISORGIMENTO
Gosto de olhar pinturas de cenas militares, batalhas, de guerras antigas, em especial do “Risorgimento”, movimento histórico de unificação da Itália. Os museus do mundo inteiro estão cheios delas. Podem reparar: sempre tem alguém olhando, vasculhando, procurando um rosto familiar. É o que faço, sempre. Procuro por mim mesmo. Algo me diz que vivi por lá. Fui um amanuense, um mensageiro, algo sim. Conheci o militar e pintor Gerolamo Induno (1825 – 1890) em Milão, na Accademia di Belle Arti di Brera, fundada em 1776, por Maria Theresia (Maria Theresia Walburga Amalia Christina, 1717 – 1780), governante da monarquia dos Habsburgos, Áustria. Gerolamo – naquela vida – era um sujeito tímido, silencioso, reservado e único. Enquanto pintava cenas militares, de guerras e mortes, eu recitava poesias, do alto de uma pedra no campo, inspirado pelas cores de seus quadros. Depois do sol, quase noite, bebíamos vinho e – então – embriagados, navegávamos pelos lugares do tempo. Foi no ano de 1859 que Gerolamo Induno resolveu se alistar na brigada de voluntários “Caçadores dos Alpes”, sob as ordens do general, guerrilheiro e revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807 – 1882), herói da guerra de independência Italiana. Não tive dúvidas: fui junto! Gerolamo logo passou a ser reconhecido por Garibaldi como o pintor oficial do “Risorgimento”, especialmente em questões de caráter oficial. É de Gerolamo um dos dois únicos retratos conhecidos da revolucionária brasileira Anita Garibaldi (Ana Maria de Jesus Ribeiro, 1821 – 1849), esposa de Garibaldi. Data de 1849 e foi identificado por oficiais de Garibaldi – que conviveram com Anita – como a representação mais fiel de sua aparência. O militar e pintor Gerolamo Induno – naquela vida – morreu em Milão, após uma longa enfermidade, no ano de 1890, aos 65 anos de idade. Despedimo-nos em silêncio. Até breve, disse-lhe. Ele sorriu, apenas. Decidi, então: nada mais o que fazer por lá; a Itália unificada desde 1861, Giuseppe morto em 1882, e Anita Garibaldi, a brasileira revolucionária, a "Heroína dos Dois Mundos", também morta, desde 1849. Deitei na relva do campo e parti, veloz, morto no relógio do tempo.
João Scortecci
IMPRIMIR NO CORPO DO ESPÍRITO / JOÃO SCORTECCI
Veio a pergunta: Você é capaz de imprimir no corpo do espírito? Essa é nova e descobri hoje. É possível? Quis saber. Vida de gráfico não é fácil. Lembrei-me, então, de uma questão dos anos 1972: Qual a cor do amor? E nós - jovens de tudo - respondíamos pelo Deus: amor não tem cor! Levávamos o cálice, as hóstias e o silêncio da alma, até o altar da igreja de Santa Cecília. E pronto. “O amor não tem cor!” Era a resposta e tudo ficava assim e por isso mesmo. Éramos felizes! E a loucura da tal Flor de Plutônio? Sei não. Desconheço. Existe isso? Talvez. Pergunta da pergunta: Você é capaz de imprimir no corpo do espírito? Silêncio. Respondi, então: Eu sei transferir - vida e morte - para o papel, sei untar tintas, esfregar grafite nos olhos, riscar beijos na pedra sabão e rabiscar versos de amor nas areias do mar. E imprimir no corpo do espírito: você sabe? Sei não. No passado tudo era mais simples. Bastava acreditar - ter um pingo de fé - e pronto. Resposta satisfatória: O amor não tem cor! E agora? Complicou, né? “Imprimir” é verbo transitivo da terceira conjugação e o “ir” é imperativo. Sinto saudade do tempo do clichê, do carimbo, da tatuagem do chiclete, do soldadinho de chumbo, das figurinhas carimbadas de futebol, da coleção de tampinhas, das balas de menta, do jogo com bolinhas de gude, das arraias no céu do Ceará e mais do que tudo: das linhas de cerol. Éramos felizes! Cara chato: E imprimir no corpo do espírito? Prometi: vou procurar saber e depois retorno. Menti. Deve ser "coisa" de impressão em 3D, algo assim. Gráfico sofre. Desligou o celular. Salvei o número do infeliz como "Chato 32". Lista que segue, flor de plutônio, fila que anda, amor não tem cor, somente passado.
João Scortecci
LIVRO DA IMORTALIDADE / JOÃO SCORTECCI
Livro de autor aflito – no prego – é torturante! Novato, então: um desespero só. Pior que tudo: quando o livro é o nosso. Muito sofrimento. Entregamos o livro pronto, com a promessa de depois – antes de liberar para impressão na gráfica – dar uma olhada final, uma arredondada. Mentira! Quando o livro volta da diagramação, bate aquele desespero mortal. Transpiração! Muda aqui, muda acolá, muda e muda. Dúvida cruel: “Jura que escrevi isso? Acho que mexeram no meu arquivo. Impossível”. Que doideira! Uma vez – juro que não faço mais – copiei o arquivo do livro diagramado no “Bloco de notas” e depois de volta para o "Word" e reescrevi tudo. Livro novo? Sim. Pensei: já que era livro novo, aproveitei e troquei também o título. Tenho uma planilha só com títulos e outra, com rascunhos. Vez por outra vou lá e trabalho – aleatoriamente – num deles. Qual? Um deles. Mil anos, talvez. É o tempo de que vou precisar para terminá-los. Nós, escritores, somos mentirosos além da conta. Vivemos com a cabeça nas nuvens dos pés. Quando a coisa aperta, vale a máxima: “A poesia salva!”. Em 50 anos trabalhando com livros – escrevendo, editando e imprimindo – só conheci um escritor honesto, corajoso e bem resolvido. Foi o Zacarias, viúvo, na época com 60 anos, da cidade de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Fechou contrato de edição do livro e pediu um prazo para concluir a obra, um romance policial, algo assim. Claro! Voltou na data combinada e sentenciou-me: “Não consigo terminar o livro! Estou desistindo.”. “Quer ajuda?”, perguntei. “Não, obrigado.” E desistiu. Foi embora feliz, radiante. A maioria de nós, escritores, mente, inventa desculpas: “Estou finalizando”; “Falta pouco”; “Fazendo ajustes”; “Dando a última olhada”; “Na revisão” ... Já escutei de tudo: “Esse é o meu último livro! Trabalheira, né?”. Sim. Mentimos, sempre. Todas as vezes em que começo novo livro – juro: meu último livro – lembro do Zacarias. Escritor feliz, determinado, resolvido e mortal. Digo sempre: a busca pela imortalidade cansa. Na sorte: a poesia salva! Deus lembrou, do hebraico Zekariah.
João Scortecci
CHARLES BAUDELAIRE E O CATIVEIRO DO POETA / JOÃO SCORTECCI
Maldito cativeiro inacabado! Disse-me: "Faltou-me o tempo que não tinha!". O poeta francês Baudelaire (Charles-Pierre Baudelaire, 1821 – 1867) morreu no dia 31 de agosto de 1867. É considerado um dos precursores do simbolismo, movimento literário da poesia e das outras artes que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao realismo, ao naturalismo e ao positivismo da época. O seu livro "Les fleurs du mal" ("As flores do mal", 1857) é considerado um marco da poesia moderna. A obra, considerada na época imoral, foi atacada violentamente pela imprensa, censurada pela justiça, multada – cabendo ao escritor, 300 francos, e à editora, 100 francos – e foi recolhida sob acusação de insulto aos bons costumes. E mais, seis poemas de "As Flores do Mal" tiveram de ser suprimidos da publicação, condição sem a qual a obra não poderia voltar a circular. Foram eles: "O ideal", "Hino à beleza", "O perfume exótico", "O cabelo", "Um fantasma" e "O gato". Na solitude do espírito, resfolegou: "Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão!". Uma nova edição, acrescida de 35 poemas, foi publicada em 1861. E somente em 1924, ganhou edição completa, com os seis poemas censurados. Baudelaire, pôde, então, deixar o maldito cativeiro. Em 31 de maio de 1949, 92 anos após sua morte, a Sociedade dos Homens de Letras, num processo diante da Corte de Cassação – tribunal de alta instância – reabilitou Charles Baudelaire e seus editores. Baudelaire morreu de sífilis, em Paris, aos 46 anos de idade, sem a realização em vida do projeto de uma edição final de "As flores do Mal", como era o seu desejo. Escreveu: “Ah! pobre! O veneno e o punhal disseram-me de ar zombeteiro: Ninguém te livrará afinal de teu maldito cativeiro.". E nele, espírito maldito, voou livre, no rabo do gato, descabelado, perfumado, imortal fantasma, no Jardim das Flores do Mal. E lá está.
João Scortecci
AS ROSAS DO JARDIM DE CARLITO MAIA / JOÃO SCORTECCI
O publicitário Carlito Maia (Carlos Maia de Souza, 1924 – 2002) nasceu na cidade de Lavras, região do Campo das Vertentes, estado de Minas Gerais. Dizia sempre: “Vim ao mundo a passeio, não em viagem de negócios”. Mudou-se para a cidade de São Paulo, no início dos anos 1930, e se tornou um dos mais conhecidos publicitários do País. Carlito Maia foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e autor dos slogans "Lula-lá", "OPTei" e “Sem medo de ser feliz”. Segundo seu depoimento, foi: moleque, lavador de xícaras de café, rebelde, office-boy, contestador, reservista de 2ª categoria do Exército Brasileiro, antifascista, sargento da Força Aérea Brasileira, boêmio, despachante policial, picareta, corretor de seguros, "clochard" – pessoa que vive em meio urbano sem trabalho nem domicílio –, ajudante de despachante aduaneiro, "bon-vivant", tradutor público juramentado... Em 1954, ingressou na Escola de Propaganda do Museu de Arte Moderna. Trabalhou nas agências McCann-Erickson, Atlas, Norton, Alcântara Machado, Magaldi, Maia & Prosperi, P. A. Nascimento, Estúdio 13, Esquire e, finalmente, na Rede Globo, onde permaneceu por mais de 20 anos. Em 1978, foi eleito Publicitário do Ano. Entre suas máximas, figuram: “Uma vida não é nada. Com coragem, pode ser muito.”; “Brasil? Fraude explica”; e “Nós não precisamos de muitas coisas, só uns dos outros”. São dele também as expressões “Tremendão”, “Ternurinha”, “Jovem Guarda” e “É uma brasa, mora!”, esta usada pela primeira vez como título de um show do cantor e compositor Roberto Carlos. Carlito Maia se notabilizou por enviar flores para uma infinidade de estreias de espetáculos teatrais, lançamentos de livros e vernissages. Recebi o meu primeiro buquê de flores, belíssimo e inesquecível, no ano de 1987, quando do lançamento do livro de poesias "A morte e o corpo", e o segundo e último, em 1989, no evento de lançamento da "Antologia Poética de Pinheiros", volume I, na Scortecci Editora na Galeria Pinheiros, 1704, loja 13. Em sua homenagem, foi criado, em 2000, o Troféu Carlito Maia de Cidadania, que premia pessoas que desenvolvem ações sociais em prol da cidadania e na luta pelos direitos humanos. Carlito Maia faleceu no dia 22 de junho de 2002, aos 78 anos de idade. Na minha vida de livros, no poema sem-fim, reescrevo, sempre, a sua melhor “deixa”: “Evite acidentes, faça tudo de propósito!” Assim seja!
João Scortecci