Pesquisar

MORFEU, PASITHEA E AS MEMÓRIAS AFETIVAS

Morfeu veio e se ocupou de mim: sonho bom, leve, adocicado, língua no céu da boca. Acordei relaxado, volátil, nos braços de Pasithea. Desconfio que o gatilho tenha sido alguém no rádio durante a madrugada falando sobre degustação de chocolate, algo assim. Esse negócio de gatilho emocional mexe com nossas forças, nossas fraquezas, nossos sentidos, com o melhor de nós. O olho vê e o cenário, então, renasce inteiro no coração. Um simples toque de dedos na pele e o sangue logo começa a ferver, a fluir apressado, nos labirintos da carne. Um cheiro inesperado, picante ou podre, pinga nas entranhas do cérebro e, do nada, traz ventanias, temporais dos infernos. Basta o silêncio ganhar uma gota de som, um bramir de asas e folhas, vazar nos ouvidos, que, ligeiro, o céu grita no ar palavras, músicas, melodias e encantamentos. Coisas da alma. Quando o paladar abre a boca e morde línguas e amores, quando saliva sabores, o gozo se transforma em hálitos, em memórias de olfato. O gatilho, lanceiro mortal, armou-se, então, e atirou no alvo das memórias do tempo. Meu pai Luiz, inteligente e brilhante, já idoso e demente, morreu no silêncio de tudo. Dói lembrar. Certo dia, ele já esquecido, morando na Casa de Repouso Toniolo, levei-o para um passeio de carro no quarteirão. Papai estava machucado no rosto, óculos quebrado, inquieto. Na clínica haviam dito que tinha sofrido uma queda, algo assim. Anos depois descobrimos que ele havia tentado fugir, pulando o muro. Entramos no carro – na época um Vectra, verde musgo, da Chevrolet – e ele, cheio de manias, esticou o pescoço e espiou o painel do carro, de olho no ponteiro do combustível. “Podemos ir!”. Rodamos no bairro alguns quarteirões, não mais que 30 minutos. Quando estacionei o carro de volta, no portão da Clínica Toniolo, ele, num passe de mágica, saiu da demência. Estava perfeitamente lúcido, racional, equilibrado, como havia sido a vida inteira. Foi emocionante, inesquecível. Conversamos sobre negócios, imóveis, sobre o falecimento da mamãe Nilce em 2003, meus irmãos, sobre a editora e sua estadia, desde então, na clínica. Papai perguntava e eu respondia de pronto. No final da conversa, antes de apagar novamente, disse-me: “Do jeito que você está fazendo está ótimo!” Alguns meses depois parou de se alimentar e adoeceu. Sofreu uma parada cardíaca no hospital, quando foi fazer uma ressonância magnética. Foi ressuscitado, teve as costelas quebradas e veio a falecer na UTI, alguns dias depois. Morfeu, então, veio e se ocupou de mim. Nunca vi papai comer chocolate algum na vida. Até hoje não sei se gostava ou não. Gostava de frutas: banana, principalmente. Esse negócio de gatilho emocional mexe com nossas forças, nossas fraquezas, silêncios do passado, com o melhor de nós. Papai Luiz faleceu no dia 3 de dezembro de 2007, aos 84 anos de idade. Chorei sua morte somente alguns anos depois, quando assisti o filme “Peixe Grande e suas histórias maravilhosas”. Não foi fácil hoje escrever sobre o nosso último encontro de lucidez. Tenho medo da demência. Foi Pasithea, com certeza, quem provocou o encontro de hoje, depois de escutar no rádio sobre degustação de chocolate, memórias de olfato e língua no céu da boca.

João Scortecci