Pesquisar

DERRIDA E A DESCONSTRUÇÃO DO TEXTO / JOÃO SCORTECCI

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) acalma os miolos, minhas inquietações e também as dores da alma! Ele e suas “aporias”, que em grego antigo significa contradição, impasse ou dificuldade. Interessante! Em “O livro da Filosofia” (Globo Livros, 2016, p. 310-313), o filósofo explica a sua famosa frase: "Não há nada fora do texto". Quando escrevo ou quando leio – qualquer coisa, não importa – sempre acho e continuo achando que falta algo. Mania chata!  Textos antigos são apagados e sofrem mudanças, sempre. A saga não tem fim! Derrida resolveu o problema, creio. Lendo sobre o seu método de desconstrução do texto, consegui entender o que o autor chama de “différance”/“diferência” (com “i”), para explicar que todos os textos escritos têm hiatos, buracos, contradições e impasses. Já disse: Derrida acalma os miolos. Digo sempre: odeio reticências – omissão de alguma coisa que não se quer revelar, emoção demasiada, insinuação. Na poesia é deplorável. Antes de conhecer o pensamento filosófico de Jacques Derrida tratava o assunto como “dilemas literários”, quando solução alguma parecia satisfatória ou desejável. Um sofrimento! No meu livro de poesia “A morte e o corpo”, publicado nos anos 1980, tive que colocar, na última página, esta nota: “Dilema literário para não julgar, fazer o poema sem-fim!”. Foi a solução na época. A cada edição do livro reescrevo o texto, sempre imperfeito. Uma dor que não tem fim. Sobre a frase "Não há nada fora do texto", eu faria uma sugestão, um acréscimo. Ficaria assim: "Não há nada fora do texto e nem do contexto". Perdão. Não resisti. Fazer o quê? Nasci assim: exagerado e inquieto. Pensei em finalizar este texto com reticências, três pontinhos e depois escrever “fim”. Desisti. Estou tentando desconstruir meus pecados, meus vazios, meus hiatos e impasses. Em diferências e deferências, claro. 

João Scortecci

Ler Mais

AMIGO DO PASSADO E NADA MAIS / JOÃO SCORTECCI

Basta uma faísca nos olhos, um lugar qualquer, um rosto, um acontecimento ou mesmo um pequeno fio de vida, que logo, no mesmo instante, nos lembramos de alguém do passado. Onde será que anda fulano: vivo ou já morreu? Curiosidade. Lembranças, viagem no tempo, rastilhos de pólvora, até saudade. Éramos felizes! Hoje, com a Internet e as redes sociais, ficou mais fácil encontrar alguém perdido no espaço tempo do diverso. Outro dia – vadiando pelas redes – encontrei um garoto azedo e estúpido da minha cruel e doce infância no Ceará, isso nos anos 1960. Gostava dele. Era diferente! Arrochado. Tinha palavra e coragem. Fiz contato com ele por e-mail e pedi o número do seu celular. Ele enviou, de pronto. Liguei no ato da emoção! Bom dia! Quanto tempo! Como vai? Silêncio. O que você quer? Perguntou-me. Senti o baque. No mesmo instante me arrependi de ter ligado. Não desliguei, de pronto. Resisti, bravamente. Perguntei: Pode falar? Posso, respondeu. Silêncio. O galego - do nada - havia se transformado num corvo podre, sem asas, mortal. Falei e falei, sem parar, relembrando mil passagens do nosso tempo de criança. Ele apenas escutou. E insistiu: o que você quer? Nada. Respondi, então. Desliguei. Triste e surpreso. O galego havia se esquecido de tudo, das nossas histórias incríveis e também dos nossos pecados de infância pervertida! Galego foi na minha infância o meu herói bandido. Um rastilho de pólvora, uma faísca nos olhos, uma estrela cadente, que riscou o céu e depois desapareceu. Escafedeu-se! Esquecimento e dor, no aperto do coração. E nada mais.   

João Scortecci


Ler Mais

CASSIANO GABUS MENDES: QUE REI SOU EU? / JOÃO SCORTECCI

O radialista e dramaturgo Cassiano Gabus Mendes - pioneiro da televisão no Brasil - nasceu em São Paulo, em 29 de julho de 1927. Filho do também radialista Otávio Gabus Mendes (1906 – 1946) e pai dos atores Cássio e Tato Gabus Mendes. Juntos construíram histórias de sucesso no rádio e na TV brasileira. Cassiano escreveu novelas de grande sucesso como Anjo Mau, Locomotivas, Que Rei Sou Eu?, Ti Ti Ti, Brega & Chique, Meu Bem, Meu Mal e Elas por Elas. No início dos anos 2000 comprei de Dante Perfetti, já falecido, pai da bibliotecária Maria Esther Mendes Perfetti, amiga de mais de 50 anos e hoje editora do selo infantil Pingo de Letra, da Scortecci, a máquina de escrever que pertenceu a Cassiano Gabus Mendes, falecido em 1993. A máquina tem história. Nela o mestre da dramaturgia brasileira escreveu as telenovelas Anjo Mau (1976) e Que Rei sou Eu? (1989). Vez por outra – quando a dor do tempo assola o meu coração de poeta - gosto de escutar o seu barulho, sua batida de teclas de aço no papel. A máquina de escrever – uma Remington portátil verde escuro - é incrível: escreve e imprime ao mesmo tempo! Quando funcionário da FK Equipamentos para Escritório (de 1977 até 1982) vendia máquinas de escrever da Remington, empresa fundada pelo norte-americano Eliphalet Remington (1793 – 1861), que também fabricava armas de fogo e aparelhos de barbear. Sobre a máquina de escrever do escritor Cassiano Gabus – hoje peça do memorial da Scortecci – funciona assim: sem eletricidade, fios e cabos, não está subjugada às Big Tech e para imprimir versos e prosas, não precisa acionar a tecla Ctrl P. Simples assim.

João Scortecci

Ler Mais

BEST-SELLER CARIMBADO / JOÃO SCORTECCI

“Queremos publicar um livro!” Foi o que escutei do jovem casal. “Dueto literário?”, perguntei. “Não. Livro solo”, explicou o marido, olhando para a esposa. Abriram uma pasta de elástico azul e tiraram um maço de poemas. Mais de 200, creio. O marido, então, começou a fazer uma triagem, entregando para a esposa os poemas selecionados por ele. Estranho. “Essa não! Essa também não!” Foi fazendo uma pilha à parte, com os rejeitados. A esposa observava tudo, calada, aparentemente concordando com a seleção. O marido explicou: “Queremos um livro com 100 páginas, no máximo”. “Selecionem, então, 90 poemas.  As demais páginas usaremos para compor as folhas de rosto, sumário, dedicatória e cólofon”, expliquei. Levaram quase uma hora na triagem. “E o título?”, perguntei. Ele escreveu o título num pedaço de papel e me entregou. “E a dedicatória?” A autora escreveu algumas linhas num pedaço de papel e mostrou para o marido. Ele olhou – fez cara azeda – e riscou dois nomes da lista de homenageados. “Esse não! Esse também não!” A esposa balançou a cabeça, concordando. Pronto. Fechamos o contrato e iniciamos os trabalhos de edição. O casal optou por fazer o serviço de revisão na editora. O marido – sempre junto – sentou ao lado da autora e acompanhou a revisão, linha por linha. Na época, ganharam dos funcionários da editora o apelido de “Casal 20”, série de sucesso da televisão americana criada pelo romancista Sidney Sheldon e protagonizada pelo casal rico e simpático Jonathan (Robert Wagner) e Jennifer Hart (Stefanie Powers). Risos. Quando os livros ficaram prontos, o marido veio buscá-los. Sozinho. Conferiu os exemplares e, sentado no banco da recepção da editora, na época localizada na Galeria Pinheiros, releu toda a obra, página por página. Agendou, então, a data do lançamento e, para a noite de autógrafos, fez uma exigência: “Quero uma cadeira ao lado da minha esposa!”. E assim foi. Muita gente no evento. Família e amigos. Coquetel, música e um fotógrafo contratado por ele. A esposa autografava e entregava o livro para o marido, que lia a dedicatória e, com um carimbo, validava o texto escrito. Não saiu nenhum livro sem o carimbo. Eu juro! Estranho foi receber de presente o meu exemplar, o último da noite. Tinha dois carimbos na folha de rosto. Um no início da dedicatória e outro, no final. Desconheço a razão dos dois carimbos. Pensei, no início, tratar-se de um erro, já que o primeiro carimbo estava meio apagado, com falhas de impressão. Com o tempo, desconfiei dos dois carimbos, um no início e outro no final da dedicatória, como limitadores de espaço. Qualquer palavra fora dos limites que surgisse depois, seria sinal de cumplicidade, de traição. Algo assim. O casal, depois de alguns anos, separou-se. A esposa poeta ligou, pedindo ajuda. Explicou: “O meu ex-marido entrou na Justiça cobrando parte dos lucros sobre a obra, segundo ele, um best-seller, com milhares de exemplares vendidos”. Imaginação fértil. E nada mais.   

João Scortecci

Ler Mais

FERNANDO, UMA PAIXÃO DE POETA / JOÃO SCORTECCI

Fernando era o nome dele. Tinha 18 anos de idade e era a paixão desbragada da menina poeta, olhos grandes, 16 anos de idade. Quem me ligou na editora foi sua mãe, indicação de uma professora de Letras, autora da Scortecci. Disse-me: “Quero publicar o livro de poesia da minha filha!”. Marcamos, então, uma data para reunião na editora. O livro estava datilografado em papel sulfite e tinha cerca de 60 páginas. Um poema por página, sumário e dedicatória. Título do livro: “Fernando, uma paixão!”. Comecei, então, a folheá-lo, batendo olhos, numa leitura dinâmica. Dedicatória: “Para o Fernando, amor da minha vida”. Li alguns poemas. Parei. Todos contavam a história do amor da poeta pelo príncipe encantado Fernando. Um diário. Olhei para a mãe e ela – adivinhando o meu incômodo – declarou: "Scortecci, preciso publicar esse livro. Essa menina – olhou para a filha sentada ao seu lado – está me deixando maluca. Já infernizou a vida do pai. Chora pelos cantos da casa, não come, não dorme e fala que vai cortar os pulsos”. A jovem poeta balançou a cabeça validando a história. Risos. "Eu quero!”, exclamou, batendo os pés no chão. Nos poemas do livro, eram relembrados o dia em que a poeta conheceu o Fernando, o primeiro encontro dos dois, a paquera, o primeiro olhar, a troca de bilhetes de amor, tardes no cinema e no shopping, o primeiro abraço, os primeiros beijos, quando escondidos viajaram para Ubatuba, e o dia em que ficaram juntos, fizeram amor e juraram amor eterno. Aceitei. Propus uma edição de 100 exemplares, tiragem mínima. A poeta me olhou e sorriu, radiante. Fechamos o contrato e começamos a trabalhar na edição do livro: digitação, diagramação e arte de capa. A poeta queria lançá-lo no mês de junho, na festa junina da sua escola. Disse-lhe, então: “Temos pouco tempo! Vamos precisar correr e seguir um cronograma rígido. Anotei as datas num papel. A poeta seguiu tudo à risca. No dia da liberação dos arquivos para impressão, perguntei-lhe: “E o Fernando?”. Ela me olhou e disse, sorrindo: “É surpresa!”. Estava eufórica. Gelei. O livro entrou na gráfica no início do mês de junho. Dez dias depois – prazo normal do serviço gráfico – o livro ficou pronto. Liguei para lhe dar a boa nova. A poeta não estava em casa. Deixei recado. Não retornou. Alguns dias depois liguei de novo, para falar diretamente com a sua mãe. Ela atendeu: “O livro 'Fernando, uma paixão’ está pronto”. Silêncio. Agradeceu e desligou. Foi seca, formal. Na manhã do dia seguinte apareceu de surpresa na editora, sozinha. Disse-me: “Sr. Scortecci, poderia, por favor, destruir todos os exemplares?”. “O que aconteceu?”, quis saber. Contou-me, então: “O Fernando terminou o namoro e trocou minha filha pela sua melhor amiga”. Silêncio. Pagou-me pelo serviço e foi embora. Esperei um mês antes de destruir os livros. Poderia haver um retorno, pensei. Mas nada aconteceu. Então, guilhotinei-os. Nunca mais soube da poeta e seus versos de amor. Não conheci o seu Fernando. Hoje, quando vejo um livro com dedicatória para um Fernando, o coração bate forte. Coisas de poeta. Depois passa e dói. 

João Scortecci


Ler Mais

NÃO ACHO JUSTO SENTIR DOR / JOÃO SCORTECCI

Vez por outra recebo pedido de autor solicitando avaliação literária sobre o seu trabalho. Alguns desconhecidos. Pergunto, sempre: “Livro de poesia?”. Confesso: gosto do gênero, caminhos em que me sinto confortável. Recuso prosa. Não é a minha praia. Não tenho o conhecimento profissional para tanto.  Recomendo, então, procurar ajuda de profissional especializado. O mercado oferece boas opções. Quando o autor não conhece alguém para fazer o serviço e pede ajuda, eu recomendo. No ano de 2022, no início da pandemia de Covid-19, recebi uma solicitação de leitura crítica para um romance com mais de 400 páginas. Autor desconhecido. Procurei no cadastro da editora e não o encontrei. Pesquisei seu nome no Google, sem sucesso. Mistério. No corpo do seu e-mail uma ordem expressa: “Quero que você seja sincero!”. Fiquei surpreso, confesso. Como não poderia ser?, pensei. Respondi, então, educadamente: “Não sou a pessoa indicada para o serviço. Posso indicar ajuda profissional.” Algo assim. Enviei. No mesmo dia – algumas horas depois – veio uma resposta: “Não acho justo pagar por uma leitura crítica. O serviço deveria ser grátis, espontâneo e honesto!”. No parágrafo abaixo escreveu, ainda: “Vou procurar alguém com mais sensibilidade que você!”. Pensei, de pronto, mandá-lo para a PQP e mandar enfiar o livro no caneco. Respirei fundo. Curioso decidi, então, perguntar qual era a sua profissão. Ele respondeu, logo em seguida: “Eu sou cirurgião dentista!”. Antes de deletá-lo do meu mundo, escrevi uma derradeira resposta: “Não acho justo sentir dor. Mas acontece!”. Algo assim. Não enviei o e-mail. O danado do e-mail fico girando na saída da caixa do Outlook. Ficou lá, espontaneamente. Depois travou e deu erro. Então o apaguei, gratuitamente. Fechei a boca e liguei para minha dentista. Descobri que estava com dor de dente e a gengiva inflamada. Acontece!

João Scortecci   

Ler Mais

APOSTA É APOSTA E EU PERDI / JOÃO SCORTECCI

A Scortecci Editora funcionou durante 10 anos, de 1982 até 1992, na Galeria Pinheiros, na Rua Teodoro Sampaio, n. 1.704, loja 13. Usávamos o espaço da galeria para recitais e lançamentos de livros, local com capacidade para mais de 300 pessoas. Naquela época, eu colaborava na organização dos eventos e minha presença fazia parte do negócio. Distribuíamos folhetos, marcadores de livros e cartões de visita. Era na época a única forma de captar novos autores. Funcionava! Não existiam ainda os celulares e a Internet era um luxo, para poucos. A editora tinha na loja uma linha de telefone LP, extensão do telefone alugado de um vizinho. O correio e o boca a boca eram as únicas ferramentas disponíveis para divulgação e promoção de um evento literário e cultural. O público comparecia em peso e prestigiava os eventos. Quando saía uma pequena nota num jornal de grande circulação era a glória. A coluna mais lida na época era a do jornalista Henrique Novak, intitulada “Página do Livro”, no jornal Diário Popular. São dessa época as apostas "editor versus autor", para quem acertasse a quantidade de livros vendidos na noite de autógrafos. Apostávamos – quase sempre – uma caixa de cerveja. Eu sempre ganhava! Usava uma matemática simples e infalível. O autor dizia: “Vou vender 200 exemplares”. Eu, então, jogava – sempre – na metade: “Você vai vender 100”. Ganhava quem acertasse o número por aproximação. Eu sempre levava vantagem porque de 150 exemplares para baixo o número era meu. Confesso: nunca faltou cerveja na geladeira da editora. Apenas uma vez, uma única vez, perdi a aposta. O autor jogou alto: “Vou vender 200 exemplares”. Apostei. Vou ganhar fácil, pensei. Quando recebi o livro pronto da gráfica – alguns dias antes do evento – quase morri do coração. Era um livro com 100 sonetos e cada soneto dedicado a duas pessoas distintas. Desconfiei. O autor retirou os convites impressos e, ali mesmo, na recepção da editora, começou o seu trabalho de endereçamento. Organizado e com caligrafia primorosa. Virava o convite impresso e no verso em branco copiava uma mensagem tirada de um caderno de anotações. Escrevia, algo assim: “Maria, você sabe que gosto muito do seu esposo. Tenho por ele carinho e respeito. Eu pretendia fazer-lhe uma surpresa, mas minha esposa aconselhou-me a não fazer isso. Seria deselegante. Resolvi, então, contar a surpresa somente para você. Fiz no livro uma homenagem especial ao seu marido. Uma surpresa!". A galeria naquela noite lotou de gente. As pessoas chegavam no caixa e pediam 5, 10 e 15 exemplares do livro. Lembro que um homem idoso pediu um pacote fechado com 25 exemplares. Disse em voz alta: “O meu filho está sendo homenageado no livro. Vou levar livros para toda a família!”. Naquela noite, o sonetista autografou mais de 300 exemplares. Matemática simples e infalível. Dedicou cada soneto para duas pessoas distintas. Aposta é aposta e eu perdi.

João Scortecci

Ler Mais

LIVRO EM SILÊNCIO E PONTUAL / JOÃO SCORTECCI

O convite foi impresso na Gráfica Scortecci. Dados: título do livro, nome do autor, data do lançamento, horário e local. Do lado esquerdo, a capa do livro e, embaixo da ilustração, os dados técnicos da obra: formato, assunto, número de páginas e ISBN. Convite padrão, nada diferente, apenas um detalhe estranho. No horário estava impresso: “19h30 – em ponto”. Quando vi o convite questionei: “Isso está certo?”. Responderam: “Exigência do autor”. Achei estranho, mesmo assim liberei o convite para impressão. O evento aconteceria no final do mês de maio, na cidade de Santo André/SP, no espaço de uma associação cultural mística. Não conhecia. Quando o autor veio retirar os convites, fez questão de me convidar para o lançamento e eu confirme presença: “Eu vou!”. Na época não existia ainda celular – e muito menos GPS. Usávamos com propriedade o Guia Quatro Rodas, peça obrigatória. Sai de Pinheiros às 17h, em ponto. Cheguei ao endereço 30 minutos antes do horário marcado. No local, apenas o autor. Cerimonioso, vestido com uma capa preta, anel e um bastão de madeira, mostrou-me o local do evento. Um salão. Chão de madeira, quadros de fotos de ilustres nas paredes, cortinas de veludo vermelhas, relógio de parede no canto e no centro, um candelabro girante no teto. Algumas lâmpadas estavam queimadas. O local parecia velho e sujo. No centro do salão, uma mesa retangular, com 24 cadeiras. À frente de cada cadeira, um exemplar da obra do autor, pratos de papelão, garfos e facas de plásticos. Nada mais. O autor mostrou o meu lugar e pediu, então, que eu sentasse. Sentei. Ele ocupou a cabeceira da mesa, no lado oposto à entrada e ficou em silêncio. Perguntei-lhe: “Você não vai vender o livro?”. “Não. Somos 24 pessoas”, explicou. Às 19h30, em ponto, as pessoas entraram na sala e tomaram os seus lugares. Tudo em silêncio. Nenhuma pessoa jovem. Apenas duas mulheres. Foram servidos sanduíche de pão com queijo e guaraná em copo de papel. As pessoas comeram o sanduíche, tomaram o guaraná e pontualmente, às 20h, se levantaram e foram embora, em silêncio. Um detalhe importante: os exemplares estavam autografados. Inclusive o meu. Permaneci sentado. O autor se levantou e me disse: “Boa noite!”. Foi o que fiz. Entrei no meu Uno Mille branco e voltei para a cidade de São Paulo. Foi assim – exatamente – como tudo aconteceu. O lançamento mais estranho e místico em 43 anos de editora.

João Scortecci

Ler Mais

MEDO, O MAIOR INIMIGO DO ESCRITOR

São muitos os inimigos de um escritor, iniciante ou não! José Francisco – indicação de um amigo dono de uma pequena livraria – ligou-me e quis saber de pronto: “Escrevi um romance e quero publicá-lo: como funciona?”. “Parabéns! O livro está pronto?” Pergunta obrigatória. "Quase!”, respondeu-me. “Falta o quê?” José Francisco, então, soltou a língua e tentou resumir o enredo da sua ficção, sem sucesso. Foi repetitivo, confuso. Parecia ansioso e coberto de medo. “O livro é um espelho da minha vida, com ação, suspense e mistério. Dei uma floreada!”, explicou. “E quando você termina o livro?”, insisti. “Logo!” Muitos escritores ficam no “logo” e, infelizmente, morrem ali mesmo, antes do prelo. Não conseguem terminá-lo. As razões? São muitas. Medo de não agradar ao público leitor, de se expor além da conta, de ser julgado pelos amigos, de receber crítica cruel nas redes sociais, de virar motivo de piada na família e na profissão, de descobrir – da pior maneira possível – que não é criativo, sua história é comum e beira o ridículo. Não é fácil. Existe uma distância imaterial, entre o “quase” e o “pronto”. Medo é o estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo. Nos anos 1990 publiquei um livro de um empresário do interior de Minas Gerais. Poucos exemplares. Enviou-me passagem, providenciou hospedagem e eu fui ao lançamento. Evento lindo, num clube da cidade. O livro não foi vendido e foi autografado previamente para cada um dos amigos, personalidades e familiares da cidade. A festa terminou por volta da meia-noite. Fui para o hotel e caí na cama, morto de cansaço. O interfone do quarto 11 – não esqueço até hoje o número – tocou às quatro e pouco da manhã. Já estava acordado, pronto para voltar para São Paulo. Era o autor empresário e sua esposa. Que susto! Desci e os encontrei na recepção do hotel. Estava transtornado, fora de controle e chorava muito. “O que aconteceu?”, perguntei. “Precisamos recolher todos os livros! Eu me arrependi! O que os meus amigos vão pensar de mim. Estou arruinado!”, repetia, gritando copiosamente. Sentamo-nos no saguão do hotel e começamos a conversar sobre o livro. Era de reminiscências poéticas e bem escrito. Reli lá mesmo e lhe disse: “Não encontrei nada que o desabone”. O autor começou a passar mal, provavelmente à beira de um infarto. Sua esposa, então, sugeriu: “Vamos pegar o carro e recolher todos os livros”. No início, achei a ideia uma maluquice. Depois, com calma, concordei: “Cidade pequena, livros doados, seguindo uma lista prévia de pessoas todas conhecidas... Vamos!”. Fomos primeiro à casa do prefeito e depois às dos vereadores e políticos da cidade, do padre, do delegado e dos fazendeiros da região. Todos devolveram o exemplar, sem drama ou perguntas maiores. “Quem ficou faltando da lista?”, quis saber. Alguém disse: “Apenas o Luiz Antônio, amigo de infância e sócio”. Fácil, pensei. Luiz Antônio não abriu a porta e respondeu pela janela entreaberta: “Não devolvo! Nunca! É meu”. O autor desmaiou ali mesmo e foi conduzido desacordado para a Santa Casa da cidade. E a história ficou por isso mesmo. Vez por outra busco na Internet o livro pelo título e pelo nome do autor. Nada! Nunca mais nos falamos. O poeta empresário mineiro faleceu em 2022, aos 82 anos de idade. Sempre que pergunto a um escritor se o seu livro está "pronto", lembro dessa história. Medo é medo: estado emocional provocado pela consciência que se tem diante do perigo de ter um amigo FDP. De poesia também se pode morrer.  

João Scortecci       

Ler Mais

AMOR VERNAL DE INFÂNCIA

Amor de brincadeiras: de beijos molhados, mãos de dedos entrelaçados, malícia e pureza, de olhos de paixão no coração. Sexo de dedos e cheiros, no batente de pedra do portão de ferro do casarão. Segredos desenhados com carvão no jogo de amarelinhas, bilhetes de papel e silêncios de espera: de goma e raízes. Amor de infância. Vernal. Vez por outra: na inocência das tardes do Pajeu, éramos peixes, das águas de corpo. Igual sapoti doce e seriguela agridoce no céu dos pecados. Espelhos turvos de Carás, mussuns e piabas. Você lembra? Eu que não tinha paciência (precisava?), adorava beliscar o grilo de suas entranhas de moça, de menina de coxas e pernas no cio. O ar tremia junto. Batia asas de chuva, orvalho e perfume. Primeiro no balanço da goiabeira do quintal, depois, na cola do muro do vizinho dos fundos e por fim: na despensa, na casa das farinhas, no encosto do saco de batatas, de arroz e feijão de corda, no açoite de cabelos negros e longos, no suor do calor e do sol do amor. Pingos de terra e leite. Éramos passarinhos de nós. Leves e livres. Você lembra? No encontro de morte - última vez - você, então, confessou-me tudo: Lembro. Sou a memória de tudo! Fui o primeiro gozo, o beijo aprendiz da tua boca, o ensinamento do meu toque, o abraço do teu coração. Eu lembro. E a morte, então, chegou de vez. Revelou-se: Eu sou o gozo da tua alma. Precisava? Quis saber. E a morte, então, sorriu. Fechou o portão de ferro do casarão e partiu em silêncio.       

João Scortecci


Ler Mais

DAS ESCOLHAS DE UM LIVRO / JOÃO SCORTECCI

O livro salva. Cura neuroses e alimenta manias. É o que dizem. Acredito nisso. Li na infância as obras de Monteiro Lobato, Júlio Verne e José de Alencar e, na adolescência, os livros “Encontro marcado”, de Fernando Sabino, “O diário de Dany”, de Michel Quoist e “O profeta”, do libanês Khalil Gibran. Pouco mais de 20 títulos. Isso antes de deixar o Ceará e vir morar na cidade de São Paulo, no ano de 1972. Tinha 16 anos de idade. Tornei-me sócio do Círculo do Livro e cliente da Livraria Brasiliense da Rua Barão de Itapetininga e do Largo do Arouche. Não parei mais. Tornei-me, então, um leitor. Na época, autores estrangeiros – na maioria de clássicos – eram raridades nas livrarias, em comparação com os milhares de títulos de hoje. Gostava de um autor e pronto: lia tudo dele. Aprendi, depois – isso levou algum tempo – a caçar novidades nas livrarias do centro da cidade. Tinha tempo. Foi uma época interessante. Fazia assim: olhava a capa do livro, depois o assunto, a sinopse e, por fim, a biografia do autor. Na edição de 2025 do projeto Circule um Livro, realizada na Avenida Paulista, no vão do Prédio da FIESP, na cidade de São Paulo, pude observar o modo operante de três leitores, que colocaram a barriga num balcão de 5 metros e lá ficaram por mais de 30 minutos. O primeiro, um homem com pouco mais de 30 anos de idade, escolheu livros assim, pela ordem: capa, título, assunto e a sinopse no verso de capa. Não abriu os livros, não folheou, não leu as orelhas, não quis saber o nome da editora e muito menos o da gráfica em que foi impresso. Consultou exemplares de seis títulos. Levou um deles. Anotei. Em seguida apareceu outro homem, pouco mais de 50 anos de idade. Selecionou três títulos, dois deles no formato de bolso. Conferiu capa e título. Depois leu as orelhas e o cólofon. Interessante: os três não tinham ilustrações de capa. Levou um livro de bolso. Por fim, uma moça, jovem, selecionou cinco livros diferentes. Todos com capas coloridas e títulos de assuntos diversos. Não abriu nenhum deles. Cheirou. Colocou-os um ao lado do outro e fotografou com o celular. Depois foi embora de mãos vazias. Conclusão sobre as escolhas pessoais de um livro: nenhuma! O livro cura neuroses, alimenta manias e salva também. Tudo junto no melhor do seu tempo.

João Scortecci       

Ler Mais

O ESPELHO DO PÁSSARO PRETO / JOÃO SCORTECCI

O pássaro preto da noite - que não era morcego - ficou preso na rede dos sonhos. Estaria morto? Talvez. Cutuquei com a ponta do dedo e nada. Esperei, então, adormecido no melhor da hora. O dia amanheceu. Do nada – depois de uma leve brisa de vento – o bicho se mexeu inteiro, pendurado pelos pés, preso na rede de proteção do quarto. Acordei, de vez. Quem é você? O pássaro preto sussurrou: Sargento-chopi, mais conhecido como graúna ou ainda pássaro preto. Você tem nome, quis saber, curioso: Tenho: sou o Chopim do Abacateiro, sem vizinho. Olhei: imenso, cheio de abacates, na altura do 4º andar, onde moro. Disse-me: errei o caminho e caí na rede! Protestou. Solte-me! Ordenou. Aflição de bichos que se respeitam e se olham na dor. Inveja: eles voam e Eu não! Amanheci desconfiado com sol nos olhos do corpo: passarinho de mim. Devo libertá-lo? Eu e as brevidades de querer voar junto: livre. Olhei e me vi abatido no desespero do espelho da alma. Eles voam e Eu não! Aflição de bichos que se respeitam e se olham no tempo. Você volta depois? Quis saber. Talvez, respondeu-me. Nos soltamos, então. E voou. Chopim voou leve na direção do abacateiro do vizinho e eu fiquei morto, preso no espelho da rede dos sonhos. Até quando? Sempre. 

João Scortecci
Ler Mais

PARA VOCÊ, LEITOR DE LIVROS / JOÃO SCORTECCI

Legal saber que você é um leitor de livros! Reconhecemos a importância do hábito da leitura e dos benefícios que ela proporciona: conhecimento, expansão do vocabulário, melhora na escrita, aumento da concentração, fortalecimento do pensamento crítico, desenvolvimento da criatividade, prazer estético, entre tantos outros que só os que leem experimentam.
Esta pequena nota se destina a você, leitor consciente da importância de somente comprar livros comercializados de forma legal e confiável, em livrarias físicas, lojas virtuais, distribuidoras, casas editoriais, feiras, bienais e eventos literários e culturais. O produto livro e outros bens culturais – como músicas, filmes, pinturas, fotos – quando comercializados em endereços piratas e ilegais – físicos ou virtuais – causam enormes prejuízos ao setor editorial e livreiro e aos autores. A Internet, infelizmente, através de plataformas irresponsáveis – algumas, cúmplices – tem sido canal fácil para fraudes, golpes e todo tipo de crime. No ano de 2024, o prejuízo para autores e editoras chegou a R$ 1,4 bilhão, o equivalente a cerca de 50% do rendimento anual das vendas do setor.
No meio digital, hackers são responsáveis por quebrar travas de acesso a e-books e obter cópias indevidas e ilegais. Algumas plataformas criminosas trabalham com acervos inteiros em PDF e oferecem ainda serviços “sob demanda”, em que os usuários pedem títulos específicos e recebem os arquivos diretamente em sua caixa de e-mail. Tem sido comum também a criação de grupos de leitura livre ou clube do livro e da leitura, em que usuários trocam arquivos digitais, recomendam pastas compartilhadas e ensinam como acessar bibliotecas digitais ilegais. Isso é crime!
Editores e autores não são contra iniciativas que estimulem o compartilhamento de leitura e livros; muito pelo contrário, pois apoiam e fornecem livros com descontos especiais para os membros desses grupos. Dados da ABDR – Associação Brasileira de Defesa dos Direitos Autorais e Reprográficos e de entidades do livro estimam que, dos R$ 2,52 bilhões faturados em 2023, pelo setor editorial e livreiro, deixou-se de faturar cerca de R$ 1,2 bilhão, valor “perdido” para a pirataria. Em 2024, o prejuízo chegou a R$ 1,4 bilhão, o que corresponde a 50% da quantia arrecadada no ano, correspondendo a cerca de 154 mil obras: 56%, de literatura geral; 39%, relacionadas à área do Direito; 4%, de livros religiosos; e 1% de livros com temática infantil ou didática.
Temos que combater a pirataria e a venda ilegal de livros. A Lei de Direitos Autorais no Brasil garante ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor – de forma legal, conforme contrato com editora, quando houver – de sua obra, incluindo livros, em qualquer formato, físico ou digital. Isso significa que configura violação legal qualquer reprodução, distribuição ou disponibilização de uma obra sem a autorização do autor ou da editora e sem cumprimento de regras contratuais.
Mesmo com o intenso trabalho desenvolvido pela ABDR e entidades do setor, precisamos do apoio e do trabalho voluntário e coletivo de conscientização da prática ilegal que assola o País. Denuncie. Não compre livro pirata! Não faça nem compartilhe PDF pirata. Colabore, orientando e explicando em escolas, universidades, clubes de leitura e grupos de WhatsApp sobre a importância de combater a pirataria de livros e de conteúdo editorial.
Esta nota é para você, leitor legal, que gosta de livros, curte e incentiva o hábito de leitura. Compartilhe essa ideia. O livro agradece.

João Scortecci
Escritor, editor, gráfico e livreiro.
scortecci@gmail.com

Ler Mais

CHIQUINHA GONZAGA E O ESCÂNDALO DO “ENFIAR O PÉ NO JACA”

“Jaqueira” é uma árvore tropical de grande porte, pertencente à família das Moraceae, nativa da Índia e cultivada na Ásia e no Brasil. Produz o maior de todos os frutos comestíveis: a jaca. A expressão popular “enfiar o pé na jaca” nada tem a ver com a fruta e com as jaqueiras, mas com uma espécie de cesto – de nome “jacá” – feito de bambu ou cipó, usado preso ao lombo de animais para o transporte de mercadorias. Não se sabe quando o acento agudo desapareceu da expressão. Escafedeu-se! Existem outros casos de adágios bastante conhecidos: “Batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão”, “Quem não tem cão, caça como gato” e outros. “Enfiar o pé na jaca” significa cometer excessos, beber muito, exagerar na dose! Os condutores desses animais – conhecidos como “tropeiros” – ao longo de suas viagens, paravam no caminho para beber. Bêbados - quase sempre - ao tentarem subir nas montarias, acabavam enfiando o pé no jacá. É também sem acento agudo o escândalo político do “Corta-jaca”, que aconteceu em 26 de outubro de 1914, no palácio do Catete, no Rio de Janeiro, na época sede do governo federal. Na presença de diplomatas e da elite carioca, o tango “Gaúcho” – popularmente conhecido como “Corta-jaca” –, da compositora, instrumentista e maestrina Chiquinha Gonzaga (Francisca Edwiges Neves Gonzaga, 1847-1935), foi executado pela pintora, cantora, pianista e primeira-dama Nair de Teffé (1886-1981), esposa do então Presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca. O poeta, teatrólogo, músico e compositor maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), amigo do marechal, havia observado que, nas festas palacianas, nunca se executava música nacional. Era, portanto, a primeira vez que esse tipo de música penetrava nos salões elegantes da elite, fazendo com que o fato seja considerado a alforria da música popular brasileira. E foi por sugestão de seu professor de violão, Emilio Pereira, que a primeira-dama Nair de Teffé executou o tango “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga. No dia seguinte, em sessão do Senado Federal, o senador Ruy Barbosa (1849-1923), adversário político do Presidente da República, comentou o acontecido: “Por que, Sr. Presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao Corta-Jaca? (...) A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque do cateretê e do samba (...)”. Até tu, Ruy! Aqui cabe o adágio – às avessas, claro: “Vale mais uma hora de tolo que a vida inteira de sábio.” Exagerou na dose! 

João Scortecci
Ler Mais

TENHO A IDADE DE 7 PAPAS

Cada um conta o tempo dos anos já vividos como deseja. Não há regras, felizmente. Poucos dizem na lata a idade. Sugestões: Tenho 65 natais, já vivi 31 carnavais, dormi e acordei 720 luas, sou do tempo do Elvis, da Jovem guarda, do Homem na Lua etc. Vale tudo! Uma autora da Scortecci – isso nos anos 2000 – desistiu de publicar sua obra de crônicas porque no contrato de edição tinha a obrigatoriedade que constar o ano do seu nascimento. Bateu o pé e foi embora. Meu pai Luiz gostava de aumentava a idade. Tive um pai amado, maravilhoso e cheio de manias. Dizia sempre: novo é aquele que tem menos que a minha idade e velho é aquele que tem mais! Um dia perguntei-lhe, então, a razão. Ele explicou: “Gosto de ver a reação na cara das pessoas! Risos. Adorava quando as pessoas – surpresas - respondiam: “Não parece!”. Eu - vez por outra - copio dele a mesma brincadeira. Sou – também – um engodo de manias e trejeitos. Meu sogro Murillo, já falecido, no dia do seu aniversário costumava, sabiamente, dizer: “Quero viver mais 5 anos!”. Fez isso durante 35 anos, tempo que convivemos. Funcionava! Murillo vivem até perto dos 90 anos. Eu gosto de contar os meus anos vividos pelo número de Papas do meu tempo, desde 1956, ano que nasci. Foram desde então, 7 papados: Pio XII, João XXIII, Paulo VI,  João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco I. Estou pronto – e disposto – a mudar a minha idade, para 8 papados, agora que o Papa Francisco faleceu no dia de hoje. O seu papado durou 12 anos e 39 dias. Digo sempre: Estou velho, tenho 7 Papas nas costas! Risos. O engraçado mesmo é que quando faço a brincadeira às pessoas de pronto, também, costumam fazer suas contas. É automático! Vamos lá: quem nasceu no papado de Francisco tem, no máximo, 12 anos e 39 dias de idade. No papado de Bento XVI, 20 anos. No de João Paulo II, 47 anos. O problema começa a ficar sério e perigoso para quem nasceu no pontificado de Pio XI - 8 papados e agora próximo do 9º - que começou no ano de 1922, e de lá pra cá, já se passaram 103 anos. Nasci no papado de Pio XII, tenho, portanto, no máximo 86 anos de idade. O tempo é veloz!

João Scortecci

Ler Mais

MINOTAURO, AS ASAS DE ÍCARO E A ESPADA DE TESEU

Menino de tudo – isso nos sonhos do rei Minos de Creta – pude ver de perto, pelo buraco do tempo, o monstro Minotauro, criatura com a cabeça de um touro sobre o corpo de um homem. Minotauro, filho de Pasífae, mulher do rei Minos, fruto de uma paixão proibida com o Touro Cretense. Foi o poeta Ovídio quem primeiro contou-me sobre Minotauro. Ele existe! Disse-me. E eu acreditei. Desci no silêncio escuro do labirinto até o sítio do rei Minos e lá fiquei escondido, até o dia nascer de sol e a fera rugir de fome e sair selvagem para caçar no Sítio de Cnossos. Ovídio havia me dado em seus versos um mapa do labirinto, encontrado no meio dos desenhos do arquiteto e escultor Dédalo, responsável pela construção do labirinto, desde então, morada do Touro de Minos. Mestre Dédalo, depois da construção do labirinto, foi aprisionado pelo rei Minos, junto com seu filho Ícaro. O rei o tratava muito bem, mas não o deixava ir embora, com medo que revelasse sobre o Minotauro e entregasse aos inimigos os segredos dos mais de 1300 compartimentos do labirinto. Dédalo era um escultor brilhante e talentoso. Foi ele quem esculpiu, pela primeira vez, uma estátua de olhos abertos. Naquela época todas as estátuas da Grécia antiga eram talhadas com os olhos fechados. Dédalo, então, resolveu fugir e levar junto seu filho Ícaro. Juntou penas de pássaros e as grudou umas nas outras e as colou com cera de abelha, construindo, assim, quatro asas. Duas para ele e duas para Ícaro. Antes da fuga - numa manhã de vento forte e sol incandescente – disse ao filho: "Ícaro, não voe baixo demais que a água do mar pode molhar as asas e não voe muito alto, ou o calor do sol vai derreter a cera." Os dois fugiram voando da ilha. Entusiasmado com as asas, Ícaro voou alto - na direção do sol - e a cera de abelha derreteu-se, e Ícaro, então, caiu no mar, perto de uma ilhota do mar Egeu, entre a Grécia e a Turquia, hoje de nome Icária, em sua homenagem. Com a fuga de Dédalo a notícia da existência do Minotauro - criatura com a cabeça de um touro sobre o corpo de um homem – correu o mundo. Coube a Teseu - herói ateniense, filho de Egeu e Etra – caçar o monstro. Eu estava lá. Ariadne, filha de Minos, apaixonada por Teseu, entregou-lhe no portão do labirinto a ponta de um novelo de lã, para que não se perdesse no caminho. Teseu encontrou o monstro e o matou com um único golpe com sua espada. Depois, guiado pelo fio de lã, voltou para os braços de Ariadne. Acordei do sonho de Minos de Creta, fugindo dos soldados do rei. Estava náufrago no mar Egeu e fui resgatado pelo navio de Teseu, até Atenas, onde reencontrei o espírito de Ícaro e o livro de Ovídio, escrito no exílio no mar Negro. Foi assim.

João Scortecci


Ler Mais

COISAS DO SONO E DAS BREVIDADES DA NOITE / JOÃO SCORTECCI

Nada do sono chegar. Escafedeu-se! Uma hora ele chega e me pega de vez. Inteiro. Aprendi, desde então, a esperá-lo, no melhor da hora. Nossa relação de amor é simples: de chegada e posse, sem brevidades. Ele chega e me pega, me entrego fácil, vencido, simples assim. Apagamento espiral, sem curvas ou ladeiras. Gozo frontal, marrento, feroz. Entrego-me derrotado e feliz. Entrego-me agitado, inquieto, doído. É assim. Sempre foi assim. Pelo bico do funil viajo no espaço: de braçadas, de léguas, de mundos. O Eu etéreo espuma, navega, corre, luta, chuta, ama e explode: igual rastilho de pólvora. Exausto acordo do transe - afoito e aceso - e retorno, então, ao vivo. O sono - ainda - não existe. Leio e escrevo. Ligo o rádio e escuto o de sempre. Uma hora ele vai chegar e me levar de vez. Relação de amor e brevidades. Gozo frontal, marrento e espiral. Nada de novo: sem curvas, ladeiras e precipícios. 

João Scortecci

Ler Mais

DEPOIS DA PANDEMIA / JOÃO SCORTECCI

Das domingueiras. Iguais, diferentes e únicas. O que fazia, o que faço e o que pretendo fazer, ainda, depois que a pandemia da Covid-19, passar de vez. A lista de “vontades” é grande. Tentações! Fiz as contas e descobri que vivi, até hoje, 3059 domingos. Pouco mais de oito anos inteiros. Muito, né? Tenho uma lista com tudo anotado. Segue: defequei fraldas, tomei mamadeiras na cama, apaguei velinhas de aniversários, comi bolo de chocolate e brigadeiro, soltei pipa, corri de havaianas no paralelepípedo, joguei bola de futebol na rua, nas esquinas, acampei no mato, no quintal de casa, joguei pedra, cartas, boliche e botão, matei calangos, cobras, passarinhos e preás, atirei com baladeira e mamonas, espingarda de chumbinho e cartucho, urinei no poste, no muro, nas águas, colei figurinhas, pesquei no rio Pajeú, no açude, no mar, no pesqueiro, briguei na rua, roubei frutas do quintal do vizinho, colecionei maços de cigarro, selos, tampinhas de refrigerante, canetas, livros raros, filmei 8, super 8 e VHS, fui fotógrafo, lobinho, escoteiro, fui à praia, ao campo, ao circo, a igreja, ao zoológico, ao museu, ao parque, ao shopping, ao estádio, fiquei de plantão no quartel, dirigi opala envenenado na Rua Augusta, tomei sorvete de frutas, café no aeroporto, sopa no Ceasa, fumei, comprei moto, fusca antigo, pedalei de bike, dancei, fui à academia, ao teatro, carnavais no clube, de rua, troquei beijos na praça, no cinema, abraços e segredos no trem noturno, almoços, jantares, fiquei bêbado, de ressaca, dormi na rede, no sofá, no chão, fui a velórios, comi pastel de feira, esfirra, ovos de páscoa, tapioca, quibe, pizza, churrasco, li e reli livros, escrevi muito, poetei versos de amor, de dor, histórias infantis, crônicas, compartilhei aloegos na Internet, assisti sessão da tarde, filmes de locadora, contei e escutei piadas, fui dono de restaurante, cozinhei feijoada, moquecas de peixe, rabada e ovos fritos, assisti TV, escutei rádio e fui menino corredor pelas ruas incertas de São Paulo. Tudo isso e mais um pouco de tudo. Fui intenso, danado, selvagem e amoroso. E pecador, também. Pergunta: O que fazer depois da pandemia? Um pouco de tudo e nada de diferente. Quero voltar a fazer o mesmo. Igual e diferente. O que preciso agora é permanecer vivo - sobreviver a tragédia - e nada mais.   

Dezembro de 2020.

João Scortecci


Ler Mais

UM QUARTO DE HORA E O AMANHECER DO TEMPO / JOÃO SCORTECCI

15 minutos de fama e nada mais. O que significa: visibilidade midiática de curta duração relacionada a um determinado indivíduo ou fenômeno. A citação – de paternidade duvidosa – atribuída a Andy Warhol, Lima Barreto e Outros – segue na moda, criando famosos, midiáticos, heróis, por eternos 15 minutos e ponto. Depois, do nada, a fama se apaga e o esquecimento cabal toma conta de tudo. Dizem que tudo na vida é assim: “15 minutos de fama!”. O resto é dor, sofrimento e perdas. Alguns poucos - pouquíssimos - talentosos, geniais e imortais – sobrevivem, ganham corpo celeste, e se tornam, então, estrelas de luz no céu. Andy Warhol (Andrew Warhola Jr, 1928 – 1987), famoso artista visual, diretor de cinema, produtor e figura de destaque do movimento Pop Art dos anos 1960 é um deles. Hábil e inteligente. Para quem gosta do seu trabalho uma dica: inaugura no próximo dia 1º de maio, no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, uma exposição com 600 peças do artista. Entre elas: “The Last Supper”, releitura de “A Última Ceia”, de Leonardo Da Vinci. Imperdível. Ainda olhando para o céu, aguardando o amanhecer do dia, talvez de chuva, reencontro o escritor Lima Barreto (Afonso Henriques de Lima Barreto, 1881 - 1922), que dizem ser, de fato, o verdadeiro autor da frase “15 minutos de fama” e imortalizada por muitos no tempo. Teria escrito, em 1911: “Houve um em Niterói que teve seu quarto de hora de celebridade” e prossegue: “Chamavam-no Trinta-Réis. Os jornais do tempo ocuparam-se com ele... Um herói! Passou à revolta e foi esquecido”. O avô dos réis e dos tostões miúdos, de terno elegante de linho branco e colônia, tirou, então, do bolsinho da frente da calça do terno o relógio de corda com caixa de caçador e corrente de fio de ouro e teria dito: “Falta um quatro de hora para o dia amanhecer!”. Silêncios. Estávamos sozinhos no quintal de casa cutucando com uma vara de bambu uma graviola madura. "Pega na boca do talo e depois torce que ela cai de vez!”. Foi o que fiz. Desde então gosto das graviolas maduras e do amanhecer de todos os dias. Guardo no céu da memória relógios antigos, que marcam no coração do tempo: um quarto de hora. Marcam 15 minutos de saudade, lembranças da última ceia e da mortalidade que é a vida veloz.

João Scortecci 


Ler Mais

POEMA “A MINHA VELA” DE EDNA MILLAY / JOÃO SCORTECCI

Nada mais sobrenatural que um fósforo riscado e uma vela no altar do amor. Candeias e gozo: pavio, parafina, azeite e luz. O Prêmio Pulitzer é um prêmio outorgado a pessoas que realizem trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical. É administrado pela Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. Foi criado em 1917 pelo jornalista e editor húngaro, Joseph Pulitzer (Pulitzer József, 1847 – 1911). A poeta e dramaturga, Edna Millay (Edna St. Vincent Millay, 1892 - 1950) foi a primeira mulher vencedora do Prêmio Pulitzer, na categoria Poesia, em 1923. Utilizou o pseudônimo Nancy Boyd para o seu trabalho em prosa, num divisor de águas e vida. Millay ficou também conhecida pelo seu estilo de vida boêmio e pelos seus inúmeros casos amorosos. Bissexual assumida, escreveu o poema "A Minha Vela": “Minha vela queima dos dois lados, ela não vai durar a noite inteira, mas oh meus amigos, ah meus inimigos, que bela luz ela dá!” Luzes de Candeia? Talvez. Assim: pavio que arde, parafina nas entranhas, azeite intenso na carne e luz que ilumina imensidões. Nada mais sobrenatural que fósforo riscado, vela que queima e o amor em dois lados.   

João Scortecci


Ler Mais