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MARIA AZEDINHA E A ODAXELAGNIA

Maria Azedinha era de colocar medo até em gente grande. Miúda e perigosa. Desenhava forcas, caixões e atropelamentos no caderno alheio. Isso no tempo do curso Técnico de Contabilidade. “Para você!” Entregava o “bagulho” e encarava a vítima, até o sujeito perder o rebolado. Da Maria Azedinha ganhei, em três anos, uma forca, uma guilhotina e um desenho de cobra com língua de fora, cuspindo veneno. Isso porque ela – dizia – gostava de mim. Um dia – no segundo ano do curso – desenhou uma faca pingando sangue e deu de presente para o professor de Estatística. “Professor, pra você!” Terminou na diretoria e acabou ganhando três dias de suspensão. Maria Azedinha não tinha mãe nem pai. Havia sido criada por uma avó e sustentada por uma tia solteirona do interior do Piauí, algo assim. Azedinha não foi à festa de formatura e acabou, misteriosamente, sumindo da turma. Escafedeu-se! Outro dia – quase 40 anos depois – dei de cara com Maria Azedinha numa loja de doces no Largo de Pinheiros, na cidade de São Paulo. “É você, Azedinha?” “Eu mesma!” Inconfundível: olhos perigosos, nariz agudo, dentes vampirescos e boca miúda. “O que você faz vestida de freira?” “Sou freira!”. “E os desenhos de forcas, caixões e facas pingando sangue?” Ela riu. Parecia apressada. Saiu da loja de doces e tomou a direção do Largo da Batata. Antes – eu vi – pinçou com o canto do olho minha dengosa orelha esquerda. Será? Azedinha era tarada por orelhas. Lembrei-me, na hora, de uma história antiga, do último ano do curso de Contabilidade. Azedinha – do nada – pulou em cima do Nonato, colega de classe, e, com uma mordida feroz, quase lhe arrancou a orelha. Despedimo-nos, então. Subi a Rua Teodoro Sampaio com a orelha esquerda coçando, inchada de medo. No caminho, zelando, vez por outra, as minhas sombras. Um detalhe, imperdoável: deixei o número do meu celular com Maria Azedinha. Que descuido! Sou mesmo um idiota! A odaxelagnia – segundo a Wikipedia – é uma parafilia que envolve o desejo sexual de morder ou ser mordido. Pode ser considerada uma forma – leve – de sadomasoquismo. Algumas vezes, é associada com o vampirismo. Isso explica – em parte – desde então eu não querer atender ligações, no celular, de números desconhecidos, não identificados. A odaxelagnia é um fetiche sexual “perigoso” – altamente “contagioso” – que não tem “cura” e contra o qual não tem reza de santo que dê jeito. Morder e ser mordido. E nada mais. Uma prosa: a minha orelha esquerda – aquela que foi pinçada com o canto do olho de Azedinha – nunca mais foi a mesma. Murchou e secou: de parafilia vampiresca.

João Scortecci

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O LOBO DAS PALAVRAS E DO SILÊNCIO

Dia distante - além de tudo - e úmido. Espero inerte, de tocaia, pelo Lobo do Esgoto. Ele respira por perto: sujo e perigoso! O corpo ferido, mortal, agoniza no berço da nave das almas. No centro do silogeu. O banco de pau - apodrecido, dorme - no fio da navalha. Perpétuo, sangra. A água fresca da chuva afoga dores, o vidro da janela, o suor de calor que arde no ventre. Não desisto. Raízes - de espinhos - alegram a flor do pântano. Pirilampos, talvez. Cheiro azedo de lua cheia. O lobo do Esgoto canta por perto: faminto e no cio. Voz das trevas. É o vento da noite: que grita. Não desisto, ainda. A biblioteca de livros ladra pecados, versos, histórias e fogo. O Lobo do Esgoto - sombreou-se - no vulto da morte. Eu o vi. Eu o sinto. Algo - sobrevive - no silêncio das palavras: de dentes, fúria e poesia.

Os lobos são mamíferos canídeos. Sobreviventes da Era do Gelo, originário do Pleistoceno Superior, cerca de 300 mil anos atrás. É o maior membro remanescente selvagem da família dos carnívoros. Existem 35 espécies de lobos distribuídas por todos os continentes com exceção da Antártica. Podem ser tanto diurnas quanto noturnas. Vivem em tocas no solo ou em cavidades naturais. A relação de amor e ódio com os humanos é mística, supersticiosa e mitológica. São deuses na mitologia nórdica e estão associados ao surgimento de Roma - alimentando os fundadores Remo e Rômulo. Dentro de nós existem dois lobos carnívoros. Um bom e outro mau. E a dúvida: qual dos lobos alimentamos nas noites de lua cheia. 

João Scortecci


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PERDER PAÍSES E A ÂNSIA DE TER UM FIM

O poeta, filósofo, dramaturgo e tradutor português Fernando Pessoa (Fernando Antônio Nogueira Pessoa, 1888 - 1935) nasceu em Lisboa, e é considerado o mais universal poeta português. Fernando Pessoa foi educado na África do Sul, numa escola católica irlandesa. Dominava o idioma inglês e foi nele que escreveu o seu primeiro poema. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa e apenas uma em língua portuguesa: “Mensagem” (44 poemas, em 1934). Como poeta, escreveu sob diversas personalidades (heterônimos): Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e outros. Fernando Pessoa morreu jovem, com apenas 47 anos de idade, em Lisboa, no dia 30 de novembro de 1935. Escreveu: "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus." O poema “Viajar! Perder países é" um dos seus mais belos poemas. Quem o lê viaja! Quem parte não fica. E por “não pertencer nem a mim” eu sou muitos. 

- VIAJAR! PERDER PAÍSES! -

Viajar! Perder países! / Ser outro constantemente, / Por a alma não ter raízes / De viver de ver somente! / Não pertencer nem a mim! / Ir em frente, ir a seguir / A ausência de ter um fim, / E a ânsia de o conseguir! / Viajar assim é viagem. / Mas faço-o sem ter de meu / Mais que o sonho da passagem. / O resto é só terra e céu. 

Fernando Pessoa

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KENNEDY, HUXLEY E AS BALAS DE LSD DO ANO DE 1963

Das distopias do dia 22 de novembro de 1963. Kennedy (John Fitzgerald Kennedy, 1917 – 1963), Presidente dos Estados Unidos da América do Norte, foi assassinado na cidade de Dallas, Texas, com um tiro na garganta e outro na cabeça, e Huxley (Aldous Leonard Huxley, 1894 – 1963), em Los Angeles, com uma injeção “amiga” de LSD. Huxley foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias e literatura de viagem. Foi indicado sete vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, mas nunca ganhou a merecida e cobiçada estatueta. Foi um desbravador da literatura e da consciência humana. Autor de clássicos imortais, como o romance distópico Brave New World (Admirável Mundo Novo), de 1932, e dos ensaios autobiográficos The Doors of Perception (As Portas da Percepção), de 1954, explorou o uso de alucinógenos como a mescalina, o LSD e outros psicodélicos, a fim de expandir a consciência e descobrir novos horizontes do pensamento humano. A experiência com drogas psicodélicas foi tão importante para Huxley, que o autor planejou deixar a vida em uma viagem de LSD, e, com a ajuda de sua esposa, assim o fez. Conheci-o nos anos 1980, quando li e reli a sua obra. Na biografia do verso de capa, o ano de sua morte: 1963! Na época passou “batido” e somente agora registro a distopia: Huxley morreu no mesmo dia que Kennedy! Onde eu estava mesmo? Na cidade de Fortaleza, no Ceará, na sala de visitas da casa da Dóris Holanda, mãe dos amigos de uma vida inteira: Leda Maria, Nelson, Alexandre, Guilherme, Raul e Paulinho. Estávamos brincando no chão, colando figurinhas de jogadores de times de futebol do Santos, de Pelé, do Botafogo, de Garrincha e outros. Panela com grude, para colar as figurinhas, e trapos de pano, para limpar a sobra de cola. Foi quando o plantão do radiojornalismo O Seu Repórter Esso nos alertou sobre a tragédia. “Escuta! Escuta!” Kennedy – o 35°. Presidente dos Estados Unidos – havia sido baleado e morto em um atentado na cidade de Dallas, Texas. Silêncio. Eu tinha sete anos de idade e, desde aquela época, sabia “conjugar” a máxima preferida - de uma vida inteira - do meu pai, Luiz: “A vida é desleal e desumana”. “E agora?” Utopias, distopias, balas de LSD, alucinógenos e figurinhas carimbadas de um admirável mundo novo. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Mesmo sobre Huxley: sabia e não sabia! Só precisava me adiantar no tempo, olhar no calendário do futuro e viajar no compasso-luz da história. 

João Scortecci


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"MAGMA" E O SONO DAS ÁGUAS DO POETA JOÃO

Guimarães Rosa, poeta? “Magma” - livro de poesia de João Guimarães Rosa, de 1936 - foi publicado postumamente pela Editora Nova Fronteira, em 1997. O livro sempre foi considerado uma obra menor pelo autor de “Sagarana” (1946), “Grande Sertão: Veredas” (1956) e Outros. Durante sua vida, Guimarães Rosa (João Guimarães Rosa, 1908 - 1967) não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em entrevista: " [...] escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes". “Magma”, poesia de nome “Sono das Águas”: "Há uma hora certa, no meio da noite, uma hora morta, em que a água dorme. Todas as águas dormem: no rio, na lagoa, no açude, no brejão, nos olhos d’água. Nos grotões fundos. E quem ficar acordado, na barranca, a noite inteira, há de ouvir a cachoeira parar a queda e o choro, que a água foi dormir…". O escritor, médico, diplomata, mineiro de Cordisburgo, João Guimarães Rosa, em 6 de agosto de 1963, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, sendo o terceiro ocupante da cadeira n.º 2, que tem como patrono Álvares de Azevedo. Morreu jovem, aos 59 anos de idade, no dia 19 de novembro de 1967, ano em que foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura, vítima de um ataque cardíaco.

João Scortecci


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O LEGADO DO LIVREIRO LEON IDZIKOWSKI

O livreiro, editor e gráfico Leon Idzikowski (1827 – 1865), nasceu na Cracóvia, Polônia. Foi o fundador da maior e mais famosa livraria e editora de Kiev e de toda a Rússia, localizada inicialmente na Avenida Kreschatik, a principal da cidade de Kiev, hoje capital da Ucrânia. Em 28 de dezembro de 1858, aos 31 anos de idade, Leon Idzikowski abriu o seu negócio, no cortiço n. 29, depois expandiu para os lados, nos números 27 e 33-35, perto da atual estação Kreschatik, em Kiev. Foi aprendiz na livraria J. Czech, em Cracóvia, e depois gerente da livraria Krystian Teofil Glücksberg (1796 – 1876), em Kiev, onde aprendeu o ofício de livreiro. Leon Idzikowski morreu jovem, aos 38 anos de idade. Depois de sua morte, o negócio foi administrado, com sucesso, durante 32 anos, pela esposa, Hersylia Idzikowski (Hersylia Buharewicz, 1832 – 1917) até 1897. Imprimiam seus próprios livros – chegaram a empregar mais de 150 funcionários –, e em pouco tempo se tornou a maior editora e livraria de Kiev. Até 1920, a empresa foi gerida por seu filho, Władysław Idzikowski (1864 – 1944). A livraria chegou a ter 50 salas e era composta por vários departamentos: postais e reproduções, livros polacos, livros russos, livros estrangeiros (alemães, franceses, ingleses, italianos), livros infantis e partituras. A sala de leitura – que podia acomodar até 500 pessoas ao mesmo tempo – e a biblioteca de empréstimo tinham mais de 173.000 volumes. Entre 1865 e 1920, a empresa publicou aproximadamente 7.000 títulos. A família Idzikovsky também possuía armazéns e livrarias menores em outras cidades: Lviv, Odessa, Kharkov e Yekaterinoslav, na Ucrânia; Vilnius, na Lituânia; Cracóvia, na Polônia; Vladivostok, Moscou, Rostov-on-Don, São Petersburgo, na Rússia. Em 1918, com a terceira Revolução Russa e a ditadura do proletariado, pregada por Vladmir Lenin (1870 – 1924), os bolcheviques ("governo da maioria") incendiaram a livraria. O que restou foi nacionalizado em 1919. A empresa existiu até a Revolta de Varsóvia – tentativa armada em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, para libertar a cidade polonesa de Varsóvia do controle da Alemanha nazista –, quando todos os bens materiais foram queimados e destruídos pelos alemães. Leon Idzikowski está enterrado na área polonesa do cemitério de Baikovsky, em Kiev. A inscrição no monumento diz: “Leon Idzikowski, natural de Cracóvia. Viveu 38 anos e morreu em 1865. Irmão, suspire a DEUS.”

João Scortecci

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GUILLAUME APOLLINAIRE, PABLO PICASSO E O ROUBO DA "MONA LISA"

O poeta e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire (1880 – 1918) morreu jovem, com apenas 38 anos de idade, vítima da gripe espanhola. Considerado o mais importante ativista cultural das vanguardas do início do século XX, é conhecido por sua poesia sem pontuação e por ter escrito manifestos importantes para as vanguardas na França, tais como o do Cubismo, e de ser o criador da palavra “Surrealismo”. Apollinaire ficou mundialmente conhecido quando foi acusado de cúmplice no roubo, em 21 de agosto de 1911, do quadro “Mona Lisa”, pintado entre os anos de 1503 e 1506, pelo italiano Leonardo da Vinci (1452 – 1519), e exposto no Museu do Louvre, em Paris. O caso teve repercussão internacional, e as investigações levaram a polícia a suspeitar do poeta francês. Ele chegou a ser preso e foi mantido na cadeia por uma semana, até ser solto, por falta de provas. Seu depoimento – não há documentos sobre o que foi dito – levou a polícia a convocar, para interrogatório, o pintor espanhol Pablo Picasso (Pablo Ruiz Picasso, 1881 – 1973), como suspeito de ser o mandante do roubo, mas nada foi encontrado que o incriminasse. Em 1913, a polícia da Itália prendeu o italiano Vicenzo Peruggia, ex-funcionário do Louvre, tentando vender clandestinamente a pintura, movido – foi o que declarou – por um sentimento nacionalista. Em 1914, “Mona Lisa” foi reintegrada ao acervo do Louvre. Historiadores e cientistas da arte afirmam que a mulher retratada é a italiana Lisa Gherardini (1479 – 1542), nascida em Florença, e que seu marido, Francesco del Giocondo, foi quem encomendou a obra. “Mona Lisa” é, muito provavelmente, a obra de arte mais famosa da história ocidental. Mede 77 cm de altura por 53 cm de largura e foi levada para a França pelo próprio Leonardo da Vinci, quando morou naquele país e trabalhou na Corte francesa. Foi vendida para Francisco I, rei da França entre os anos de 1515 e 1547, que teria pagado pela obra uma quantia bastante elevada: cerca de 4.000 táleres de ouro. O poeta Guillaume Apollinaire morreu em 1918, quatro anos depois que “Mona Lisa” voltou para o Louvre. Está sepultado no cemitério de Père-Lachaise, em Paris, tendo no seu túmulo uma escultura em forma de menir, monumento megalítico, feito por Pablo Picasso. 

João Scortecci

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“AO LIVRO VERDE” FECHA AS SUAS PORTAS DEPOIS DE 179 ANOS

“ Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.  A frase é de autoria da historiadora e professora Emília Viotti da Costa (1928 - 2017). Hoje fiquei sabendo do fechamento da mais antiga livraria do Brasil “Ao Livro Verde” com seus 179 anos, localizada na cidade Campos dos Goytacazes, norte fluminense, no estado do Rio de Janeiro. O empresário Ronaldo Sobral, atual proprietário, lutou por anos para manter a livraria funcionando, sem sucesso. A empresa enviou à 5ª Vara Cível de Campos pedido de autofalência em decorrência de uma dívida de quase R$ 2 milhões. Nem mesmo as inúmeras campanhas de apoio, até da Academia Brasileira de Letras, conseguiram impedir a tragédia. Vale lembrar que o prédio onde funcionava a livraria é tombado pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam), mas não pertence à livraria. Muitas promessas de ajuda e de nada adiantou. Ao Livro Verde fechou. Segundo o IBGE, Campos dos Goytacazes tinha em 2013, o sétimo maior PIB do Brasil e é até hoje o segundo maior do estado do Rio de Janeiro, sendo a cidade não capital com o maior PIB nacional naquele ano. Em sua costa encontra-se a maior plataforma petrolífera do Brasil, a P-51 na Bacia de Campos, fazendo com que a cidade receba junto com Macaé, o título de Capital Nacional do Petróleo. Tamanha riqueza não fui suficiente para salvar o povo e sua memória. Continuamos cometendo os mesmo erros do passado. Anotem a fatídica data: 13 de novembro de 2023, uma segunda feira. E nada mais.

João Scortecci


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SÃO PAULO: DESVAIRADA, EXOTÉRMICA E DISTANTE

Todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer! Pareço cotoco de vela: pretendo queimar até o derradeiro pavio, se possível. Tendo memória: estou dentro! Descobri - outro dia - que pavio de vela "abduzido" queima até melhor - ou mais - que a própria cera. Relações exotérmicas, algo assim. Estudei “combustão” numa aula de física, isso no final dos anos 1970. Daquela época ficou - apenas - a poesia “Química oximel”, depois, publicada no livro “A morte e o corpo”, em 1984. E nada mais. Tenho duas caixas com velas: uma com as de reza e orações e outra, ainda lacrada, guardada no âmago da mochila do kit sobrevivência. O kit é antigo, mas o guardo na certeza que irei usá-lo, muito em breve. Dentro do kit tem de tudo: anzol, isqueiro, corda, canivete, apito, lápis, caderno, veles, capa de chuva, costura, primeiros socorros, garrafa, marmita, talheres, bússola e porta documentos. Na época, quando comprei pela Internet - julguei-me - um tremendo babaca. Mas depois do apagão de outro dia da Enel, das histórias sobre  aquecimento global e as guerras, o pavio exotérmico da vida, reacendeu, de vez. Estava lendo - hoje - num blog sobre a falência visual, emocional e moral do centro da cidade de São Paulo. Que tristeza! O texto relembrava - nostalgicamente - o passado. Da beleza e da grandiosidade das lojas do centro da cidade, das vitrinas de luz, do comércio vigoroso, das bancas de revistas e jornais, das livrarias abarrotadas de gente, dos cafés, das praças e largos, dos cinemas e das pessoas em travessia: velozes e elegantes. Depois de ler o texto, sofrer junto, ler comentários, curtir e até palpitar, lembrei-me - não por acaso - dos escritores Mário de Andrade e Marcos Rey. Dois apaixonados e filhos da pauliceia desvairada. O que diriam - hoje - diante do caos absoluto? Morreria juntos. Amo São Paulo. Não menos importante, penso fazer um “upgrade” no meu kit sobrevivência. Pretendo - apertando cabe - incluir cinco livros imortais, pacote de fotografias de uma vida inteira, um pequeno dicionário, uma bota, um cortador de unhas, mais outro óculos para perto e um saquinho com sementes exotérmicas de memórias e lembranças. Junto, um vidrinho de extrato de água do Rio Pajeu, aquele que - no céu distante - banhou-me menino e - com amor, abduziu-me a alma.  

João Scortecci


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PÉ DE CEBOLINHA VERDE E UM LUGAR PARA TODAS AS COISAS

Nos anos 1960 – menino de tudo – resolvi plantar um maço de cebolinha verde no quintal de casa. “Planta que nasce novamente!” Foi o que me disseram. Curioso que sou, obedeci. Peguei uma enxada e comecei a cavar e a revirar a terra. Na verdade, cavei um buraco, dos grandes. Papai Luiz – que apareceu do nada – perguntou-me: “O que você está fazendo?”. “Uma horta!”, respondi. “E esse buraco?” Não respondi. Continuei cavando e jogando a terra no monte, ao lado. Ele se acocorou e – pacientemente – esperou por mim, até eu respirar e ouvir. “Filho, duas coisas são importantes na vida. A primeira é de ordem prática, para todas as coisas que você for fazer. Escolha o propósito, execute a tarefa e, depois, conclua com êxito”. Interessante, pensei. “E a segunda?” “A segunda é de ordem moral: antes de tirar algo do seu lugar, certifique-se, primeiro, onde irá colocá-la!”. Papai Luiz se levantou e, em silêncio, partiu. Eu, reflexivo, com a enxada, devolvi toda a terra de volta para o buraco. Plantei o maço de cebolinha verde, molhei a terra e a entreguei ao deus Sol, na sorte das minhas lembranças. Pesquisando sobre algoritmos, encontrei a biografia do matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo e escritor persa Alcuarismi (Abu Abdalá Maomé ibne Muça ibne Alcuarismi, 780 – 850), erudito na Casa da Sabedoria (ou Casa do Saber), biblioteca e centro de traduções estabelecido à época do Califado Abássida, em Bagdá, no Iraque. No seu livro “Da Restauração e do Balanceamento”, Alcuarismi apresentou a primeira solução sistemática das equações lineares e quadráticas. É considerado o fundador da Álgebra – junto ao matemático grego Diofante, de Alexandria. O radical das palavras “algarismo” e “algoritmo” vem de “algoritmi”, a forma latina do nome do erudito persa. Além do vocábulo português “algarismo”, seu nome deu origem ao espanhol “guarismo”, que, ao passar para o francês, tornou-se “logarithme” e deu origem ao termo moderno “algoritmo”. O conceito de "catálogo de biblioteca" foi introduzido nessa e em outras bibliotecas islâmicas medievais, nas quais os livros se organizavam por gêneros e categorias específicas. A incógnita nas equações algébricas era denominada pelos matemáticos muçulmanos como “xay” (“coisa”), notadamente na álgebra de Ômar Khayyam, que, ao ser transcrita “xay” pelos espanhóis, deu origem ao “X” da álgebra moderna. A Casa do Saber foi destruída durante o cerco de Bagdá, em 1258, pelos mongóis. Antes do cerco, no entanto, perto de 400 mil manuscritos foram resgatados pelo polímata persa Tuci (Naceradim de Tus, 1201 – 1274) e levados para Maragha, no Irã. Em tempo: “Pai, quem disse isso?” “Um matemático russo!”, foi o que ele respondeu, na época. Quando quis saber mais, papai Luiz já estava com demência avançada e liberto do lugar de todas as coisas.

João Scortecci

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O MITO DE PIGMALEÃO, AFRODITE E GALATHEA

Pigmaleão, na mitologia grega, foi um rei da ilha de Chipre, localizada na Bacia do Levante, no Mar Mediterrâneo. Segundo o poeta romano Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43 a.C. – 17 ou 18 d.C.), em sua obra Metamorfoses, Pigmaleão – que também era escultor –apaixonou-se por uma estátua que esculpira em marfim, ao tentar reproduzir a mulher ideal. Ele havia decidido viver em celibato, por não concordar com a atitude libertina das mulheres de Chipre, conhecidas como “cortesãs”. A deusa Afrodite – figura do amor, da sedução e da sexualidade –, apiedando-se de Pigmaleão e não encontrando em toda a ilha uma mulher que, em beleza e pudor, chegasse aos pés da que esculpira, transformou a estátua numa mulher de carne e osso, de nome Galathea, com quem Pigmaleão se casou e teve uma filha chamada Paphos, que deu nome a uma cidade portuária na costa sudoeste da ilha. Habitada desde o período neolítico, Paphos tem vários locais relacionados com o culto da deusa Afrodite, por ser o local mítico do seu nascimento. O “Mito de Pigmaleão” traduz um elemento do comportamento humano: a capacidade de determinar seus próprios rumos, concretizando planos e previsões particulares ou coletivas. Os mitos nos ajudam a entender as relações humanas e guardam em si a chave para o entendimento do mundo. Uma versão moderna da lenda é a peça teatral Pigmaleão (1916) – com posteriores adaptações teatrais e cinematográficas – escrita pelo dramaturgo, romancista e jornalista irlandês George Bernard Shaw (1856 – 1950). Na peça, em vez de uma estátua transformada em mulher, temos uma mulher do povo transformada em mulher da alta sociedade. Shaw, socialista ardente, escreveu muitos folhetos e discursos para o Socialismo Fabiano – doutrina criada em Londres, em 1883, pela Sociedade Fabiana, que esse dramaturgo integrou – que defendia gradual evolução para o socialismo, por meio de reformas sociais, diferenciando-se dos marxistas, que pregavam uma passagem revolucionária. Afrodite, responsável pela perpetuação da vida, do prazer e da alegria, sabe o que faz. É quando você – em metamorfose – torna-se aquilo que pensa ser, condoendo-se de compaixão, tragédia e amor.

João Scortecci

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CONSELHOS DE BOILEAU SOBRE A ARTE DE ESCREVER

O poeta e tradutor francês Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux, 1636 - 1711), autor da obra “Discurso sobre a sátira” (1666), em que zomba do clero e da aristocracia, pinta quadros divertidos e parodia escritores, é considerado um polemista - aquele que trava polêmicas - e um teórico da literatura francesa. Escrevia, principalmente, para a aristocracia, dentro da tradição de Aristóteles e Horácio. Em 1674, publicou “A arte poética” (“L’Art poétique”), poema didático de mil e cem alexandrinos clássicos, dividido em quatro canções - obra que influenciou toda uma geração de escritores. Em 1677, foi nomeado, juntamente com o poeta dramaturgo e matemático Racine (Jean Baptiste Racine, 1639 - 1699), historiógrafo do rei Luís XIV e, em 1684, entrou para a Academia Francesa. Em 1687, publicou “Reflexões sobre Longino”, popularmente conhecido como “São Longuinho”, santo da Igreja Católica. Boileau, foi venerado como grande poeta e inspirador de “Racine” e de “Molière” (Jean-Baptiste Poquelin, 1622 - 1673), ator e dramaturgo francês, considerado um dos mestres da comédia satírica. Boileau, nos versos iniciais do Canto I de “A arte poética”, afirma a necessidade de um talento inato, sem o qual a escrita poética lhe parece impossível. No entanto, ele sustenta a partir daí que esse talento natural não pode ser suficiente por si só e que ele deve se submeter às regras da poesia e, portanto, ao rigoroso aprendizado desta arte. A perfeição só pode ser alcançada quando o gênio e o respeito pelas regras são combinados. Escreveu: “Há certos espíritos cujos sombrios pensamentos, são como nuvem espessa; sempre emaranhados. O dia da razão não saberia atravessá-la. Antes, pois, de escrever, aprendam a pensar” (...) “E sem perder coragem, vinte vezes empreendam a vossa obra: limpem-na sem cessar e tornem a limpá-la, acrescentem algumas vezes, mas outras eliminem.” Em dois dos versos mais famosos de “A arte poética", afirma: “O que concebemos bem é declarado claramente/E as palavras para dizê-lo chegam facilmente.”

João Scortecci
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JOSÉ OLYMPIO, CASA GARRAUX E A SEMANA DE ARTE MODESTA EM BATATAIS/SP NO ANO DE 1987

A José Olympio Editora foi fundada em 1931 pelo editor e livreiro batataense José Olympio (José Olympio Pereira Filho, 1902 - 1990), na cidade de São Paulo. Em 1918, com 16 anos de idade, José Olympio deixou Batatais - Região Metropolitana de Ribeirão Preto - e se mudou para a capital paulista, com o objetivo de estudar Direito. Conseguiu um emprego na Papelaria, Livraria e Typographia “Casa Garraux” (A. L. Garraux &. C.), então de propriedade de Charles Hildebrand. Trabalhavou na seção de livros, e o serviço consistia em abrir caixas de livros e limpar a poeira das estantes. Depois passou a ajudante de balconista, época em que tomou gosto pelos livros. A “Casa Garraux” era frequentada por políticos e escritores, como Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Em 1926, com a morte de Charles Hildebrand, José Olympio assumiu o cargo de gerente da seção de livros. No final da década de 1920, José Olympio começou a se interessar por livros raros e tornou-se um respeitado entendido no assunto. Com a morte do advogado e jornalista, Alfredo Pujol (Alfredo Gustavo Pujol, 1865 - 1930), colecionador de livros raros, Olympio fez uma oferta para a família e comprou todo o acervo desse colecionador. Foi o início do seu legado. Adquiriu - depois - vários outros acervos, para, em 1931, aos 28 anos de idade, fundar a Casa José Olympio Livraria e Editora, na Rua da Quitanda, 19 A, na capital paulista. Em 1934, a livraria mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, então centro intelectual do Brasil. Em 1935, Olympio se casou com a professora e escritora Vera Pacheco Jordão, com quem teve dois filhos, Vera Maria Teixeira e Geraldo Jordão Pereira (1938 – 2008), fundador da editora Sextante (1998), junto com seus filhos Marcos da Veiga Pereira e Tomás da Veiga Pereira. Nas décadas de 1940 e 1950, a José Olympio se tornou a maior editora brasileira. Publicou perto de 2 mil títulos, com 5 mil edições, sendo 900 autores nacionais e aproximadamente 500 autores estrangeiros. Em 1987, visitei Batatais/SP - cidade natal de José Olympio -, durante a “Semana de Arte Modesta”, encontro comemorativo dos 65 anos da “Semana de Arte Moderna” de 1922. O evento em Batatais foi “grandioso” e registrou a presença de centenas de escritores de todo os cantos do Brasil. Fomos e voltamos de ônibus alugado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Do meu lado - eu na janela do ônibus e ele no corredor do meio -, o escritor e editor Pereira (Antonio Olavo Pereira, 1913 - 1993), irmão caçula de José Olympio. A viagem de 350 km, de São Paulo até Batatais, durou quase 6 horas. Dos atrasos e das demoras, uma única certeza: torcendo para não chegar nunca! Conhecê-lo foi um “presente dos deuses”. Na época, a Scortecci Editora tinha pouco mais de 5 anos de idade. Em 2001, a José Olympio Editora foi comprada pelo Grupo Editorial Record.

João Scortecci
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PALMEIRA DOS INDÍOS E A CADELA BALEIA

O ator Jofre Soares (José Jofre Soares, 1918 - 1996) nasceu em Palmeira dos Índios, agreste alagoano, distante 136 km da Capital, Maceió. Terra do “Homem da Capa Preta” (Tenório Cavalcante, 1906 - 1987) e também do escritor Graciliano Ramos (1892 - 1953), autor de “Vidas Secas” e “Memórias do Cárcere”. O ator Jofre Soares começou sua carreira em 1961, aos 43 anos. Atuou em mais de 100 filmes, entre eles: “O Bom Burguês” (1979) “O Grande Mentecapto” (1989), “Terra em Transe” (1967), “Memórias do Cárcere” (1984) e “Bye Bye Brasil” (1979). Antes disso foi oficial da Marinha por 25 anos. Já tinha se aposentado como marinheiro e se dedicava ao teatro amador e ao circo da cidade, no qual era um palhaço, quando o cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928 - 2018) o conheceu e o convidou para fazer o filme “Vidas Secas”, baseado na obra de Graciliano Ramos. A cadela vira-lata, que interpreta Baleia, foi encontrada pelo cineasta embaixo de uma barraca de frutas, numa feira de Palmeira dos Índios. Uma das cenas mais famosas do filme “Vidas Secas” é o abatimento da cadela Baleia, onde é mostrado o animal sendo atingido por um tiro de espingarda, dado por seu dono Fabiano. Quando o filme foi exibido no Festival de Cannes, na França, em 1964, o público e a crítica francesa ficaram impressionados com o realismo da cena e acreditaram que a cadela tivesse sido sacrificada de verdade durante as filmagens, o que não foi verdade. Em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” no ano de 2018, o diretor de fotografia do filme Luiz Carlos Barreto (1928 -      ), explicou como a cena da morte de Baleia foi realizada: “Pegamos uma linha branca de costura, amarramos a perna no rabo para ela fingir que tinha levado o tiro. Tinha a maquiagem, água de chocolate, não sei o quê. Ela tinha de fechar os olhos. Nós escolhemos uma locação, um carro de boi, e o sol nascendo para ela olhar para o sol. O sol batia e ela foi fechando os olhos por causa da luminosidade. O Nelson botou toda a equipe para fora, e só ficou eu, ele e o José Rosa – e a câmera. Ninguém falava nada. Na hora que ela começasse a fechar os olhos, o Nelson catucava o Zé Rosa e ele ligava a câmara. Foi o combinado. O sol nasceu, ela fechou os olhos e deu a sensação nítida de morte.” A cadela Baleia também é imortal. Vez por outra a vejo correndo no agreste, livre e solta, na imensidão da memória que é a vida. 

João Scortecci


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PASQUINADAS E O RATINHO SIG

O Pasquim foi o mais prestigiado semanário brasileiro de oposição ao regime militar pós-1964 e circulou entre 1969 e 1991. Seus fundadores foram: Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral e Ziraldo. De uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, atingiu – em meados dos anos 1970 – a marca de mais de 250 mil. O Pasquim se caracterizava – no início – como uma publicação comportamental, que falava sobre sexo, drogas, feminismo e divórcio. Depois, foi se politizando, principalmente após a promulgação do Ato Institucional n. 5, de 13.12.1968, passando, então, a ser porta-voz da indignação de setores da sociedade brasileira. O título, que significa "jornal difamador, folheto injurioso", foi sugestão de Jaguar (Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, 1932 -     ): "Terão de inventar outros nomes para nos xingar!" "Pasquim", do italiano "pasquino", era o nome de uma estátua mutilada sobre a qual os romanos afixavam escritos anônimos. Aos pés da estátua e, geralmente, no pescoço eram coladas “as pasquinadas”, folhetos com conteúdo satírico, frequentemente em versos, dirigidos a personagens públicos importantes, inclusive ao Papa. Como símbolo do jornal, foi criado o ratinho Sig (de Sigmund Freud, 1856 – 1939), desenhado por Jaguar, baseado na anedota da época que dizia: "Se Deus havia criado o sexo, Freud criou a sacanagem". Com o tempo, juntaram-se ao time figuras de destaque na imprensa brasileira, como Millôr Fernandes, Manoel "Ciribelli" Braga, Miguel Paiva, Prósperi, Claudius e Fortuna. Além de um grupo fixo de jornalistas, a publicação contava com a colaboração de nomes, como Luiz Carlos Maciel, Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa, Carlos Leonam, Sérgio Augusto, Ruy Castro, Laerte e Fausto Wolff. Em 20 de novembro de 1969, por causa de uma entrevista com a atriz Leila Diniz (1945 – 1972), feita pelo cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral, foi instaurada a censura prévia aos meios de comunicação, por meio da Lei de Imprensa. Em novembro de 1970, a maioria dos redatores foi presa, depois que o jornal publicou uma sátira do célebre quadro de Dom Pedro I às margens do Ipiranga, de autoria de Pedro Américo (Pedro Américo de Figueiredo e Melo, 1843 - 1905). Até fevereiro de 1971, o semanário foi mantido sob a editoria de Millôr Fernandes (que escapara à prisão), com colaborações de Chico Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara e Glauber Rocha. O Pasquim foi alvo de dois atentados a bomba. Na década de 1980, bancas que vendiam o semanário passaram a ser alvo de atentados e de ameaças, o que levou os jornaleiros – na sua maioria – a recusarem trabalhar com a publicação. Graças aos esforços do cartunista Jaguar, O Pasquim continuaria ativo até a edição de número 1.072, de 11 de novembro de 1991.

João Scortecci


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A “RODA DE LIVROS” DO CAPITÃO RAMELLI

O engenheiro e capitão italiano Agostino Ramelli (1531 - 1610), nasceu na comuna de Ponte Tresa, hoje Suíça. Foi o inventor da “Roda de livros”, uma estante rotativa que possibilita ler, consultar e pesquisar vários livros num mesmo local. Foi inventada numa época em que livros grandes apresentavam problemas práticos para os leitores. Girava como se fossem movimentos de um moinho movido a água. Para garantir que os livros permanecessem em um ângulo consistente, Ramelli incorporou ao projeto engrenagens epicíclicas, à medida que a roda gira, cada prateleira gira na mesma proporção, permanecendo nivelada. Ramelli ficou conhecido por escrever e ilustrar o livro de projetos de engenharia “As várias e engenhosas máquinas do capitão Agostino Ramelli” (“Le diversas et artificiose machine del Capitano Agostino Ramelli”), que, além de seu projeto da “roda de livros”, contém 195 designs, mais de 100 dos quais são máquinas de levantamento de água, como bombas d'água, pontes, moinhos e um possível precursor do motor Wankel - motor rotativo de combustão interna, inventado pelo engenheiro alemão Felix Wankel (1902 – 1988), que utiliza rotores com formato semelhante ao de um triângulo em vez dos pistões dos motores alternativos convencionais. Durante o "Cerco de La Rochelle”, ordenado por Luís XIII, rei da França, e comandado pelo Cardeal de Richelieu (Armand Jean du Plessis, 1585 - 1642), que acabou com a capitulação da cidade, em 28 de outubro de 1628, Ramelli construiu com sucesso uma mina sob um bastião - posto avançado para a defesa de um território - e conseguiu violar a fortificação, até então inviolável. Ramelli morreu em Paris, aos 79 anos de idade. Ficou na história do conhecimento como o mais criativo inventor de “engenhocas” movidas pelas forças da água e da natureza de Deus.


João Scortecci


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RILKE E O JOVEM POETA KAPPUS

Dez cartas – idas e vindas – e nenhuma poesia! O poeta checo Rilke (Rainer Maria Rilke, 1875 – 1926), em carta enviada ao jovem jornalista e cadete austríaco Franz Xaver Kappus (1883 – 1966), que ambicionava ser um poeta: “Ninguém de fora pode julgar se um autor deve continuar ou desistir de escrever: cada artista precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se entende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Na biografia de Kappus encontrei romances, roteiros e nenhuma poesia. Teria desistido? Viver Rilke e nunca ter “cometido” um poema? Impossível. Pergunta: O que teria acontecido com a décima primeira carta? Existiu de fato? De duas, uma: escrita e nunca enviada – ou nunca respondida? Ficou o mistério. Encontrei na Carta n. 7 um soneto de Rilke dedicado ao jovem Kappus: “Treme sem queixa por meu coração,/sem suspiro, uma dor muito sombria./ Só dos sonhos a nívea floração/é a festa de algum mais tranquilo dia.//Tanta vez a grande interrogação/se me depara! Encolho-me, e com fria/ timidez passo, como passaria/por bravo mar, sem aproximação.//Desce, então, sobre mim, turva amargura/como esses céus cinzentos de verão/onde uma estrela às vezes estremece.//Tateantes, minhas mãos vão à procura/do amor, buscam palavras da oração/que meu lábio deseja e não conhece” Busco, desde então, encontrar – mesmo que perdido, que seja – um poema do jovem Franz, que confesse a si mesmo: “morreria, se lhe fosse vedado escrever?”. Cadê você, Rilke? Não o tenho visto na estante de livros. Deve ter sido “surrupiado” ou ido embora, simplesmente. Quando? Não sei. Relendo a primeira carta, de 17 de fevereiro de 1903, algo nas entrelinhas, ainda por dizer: “Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes.” Outro dia, um poeta – iniciante, talvez – enviou-me pelo WhatsApp um pedido cruel: “João, lê meu livro e depois me diga, com sinceridade, o que você achou.” Cadê você, poeta Rilke? Ajude-me! A palavra “sinceridade” no âmago do verso alheio incomoda-me, sempre. O que devo, então, dizer-lhe? Que o seu poema é belíssimo, intenso e feroz? Tudo verdade! Cinquenta anos de poesia e eu não fui capaz de escrever algo igual. Escrevi-lhe, então, mensagem de resposta: “Cada poeta precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Não desista!” Fui covarde. Quase morri de inveja. Tudo culpa de Rilke e do furo da rosa! O belo não é senão o início do terrível, algo assim.  

João Scortecci


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NÃO OUSO PERGUNTAR

Sou doido, mas não sou louco. No máximo, um ogro enlouquecido! Pesquisa antiga - Fecebook avisando - feita pelo Instituto Britânico: “Crianças preferem o Google aos pais para tirar dúvidas. Até ai nenhuma surpresa. O Google substituiu com propriedades as enciclopédias: Barsa e Britânica. O que assusta na pesquisa do Instituto Britânico é que 34% das crianças não acredita que seus pais sejam capazes de ajudá-las a fazer o dever de casa e 14% não acham seus pais inteligentes.” Confesso, sem remorso: “Não fui capaz de ajudar meus filhos quando crianças com a lição de casa”. Motivo maior, talvez: impaciência masculina, algo assim. Ocupei-me - deveras - com contação de histórias e causos mirabolantes. Fiz isso, até o dia que minha filha Patrícia - esperta que só ela - disse-me: Pai, você está inventando! Então, desisti, de vez. Hoje, tento fazer o mesmo - contar histórias - para os meus netos, sem sucesso. Passei? De volta à pesquisa: Fiquei cabreiro - mesmo - com o tal dos 14% que não acham seus pais inteligentes. Não ouso perguntar-lhes. Já disse: sou doido, mas não sou louco. Aqui cabe o que mamãe Nilce dizia: “Santo de casa não faz milagre”. E pensar que a pesquisa do Instituto Britânico é do ano de 2012. Doideira, né? Hoje, já deve ter passado dos 50%, pensar que os filhos do Google não acham seus pais inteligentes. Ogro enlouquecido e nada mais.

João Scortecci

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MASSAO ONO, PEDRO MORAES, MARIA VIANNA, CUNHA BUENO E VINICIUS DE MORAES: POSTO QUE É CHAMA!

Quando da morte do poeta, diplomata e compositor Vinicius de Moraes (Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes, 1913 – 1980), em 9 de julho, uma quarta-feira, o editor e artista gráfico Massao Ohno (1936 – 2010), ligou-me e deu – de sola – a triste notícia: “Scortecci, o Vinicius morreu!”. “Não sabia”, respondi, surpreso. Massao Ono, aceleradíssimo, metralhou: “Falei agora com o Pedro, filho do Vinicius. Sabe, né? Ele autorizou usarmos aquela foto do pai de perfil, num cartaz! Sabe qual é, né?” “Não”, respondi. “Vinicius de perfil, sem a garrafa e o copo de uísque, claro!”, justificou. E continuou falando, sem parar: “Faço a arte final, “fulano de tal” cuida dos fotolitos e você imprime os cartazes. Combinado?” Topei. Massao Ohno, pilhado, continuou: “Estão organizando uma missa, algo assim, na igreja da Consolação, aqui em São Paulo, no sábado, dia 12, em sua homenagem. A ideia é distribuir o cartaz na cerimônia. Temos 3 dias!” Terminamos a conversa, com a promessa de nos falarmos novamente, no final do dia. Liguei, então, para a atriz e poeta cearense Maria Vianna, atriz em filmes como “Menino da porteira”, “A pequena órfã” e autora da Scortecci, com o livro de poemas “Vertical dos Descaminhos”. Contei-lhe o plano. Maria Vianna, prontamente, ligou para o Deputado Cunha Bueno, também autor da Scortecci e, na época, Secretário de Cultura do Estado de São Paulo. O pedido foi curto e irrecusável: “Secretário, precisamos imprimir 500 cartazes, formato meia folha, papel couchê, para um evento em homenagem ao Vinicius! Feito?” Na hora, Cunha Bueno autorizou a impressão. No dia da homenagem, na Igreja da Consolação, sábado, dia 12 de julho, às 11 horas da manhã, os cartazes foram distribuídos, gratuitamente. Surpresa foi encontrá-los – também  –  à venda, na entrada da igreja da Consolação. Até hoje não sei quem ganhou dinheiro, por fora. Na época, investigamos a bandidagem, sem sucesso. Culparam alguém da gráfica, algo assim. O cartaz e as provas, hoje, fazem parte do memorial da Scortecci. Na belíssima foto original tirada pelo fotógrafo Pedro de Moraes (1942 – 2022), filho de Vinicius, aparecem uma garrafa de uísque e um copo, além do perfil do poeta, eternizado por Massao Ohno, no cartaz. Vinicius: “Que não seja imortal, posto que é chama,/Mas que seja infinito enquanto dure.”

João Scortecci

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RISORGIMENTO: VÍTOR EMANUEL II E A “MÁQUINA DE ESCREVER” DO POETA GIUSEPPE GHIARONI

Os Romanos chamam o monumento de “Máquina de escrever”. Visitei-o em 2008. O monumento foi construído em homenagem ao “baixinho” que unificou a Itália, Rei da Sardenha, Vítor Emanuel II (1820 - 1878). Sua construção significou destruir uma grande área do Monte Capitolino, uma das sete colinas sobre as quais foi fundada a cidade de Roma. Foi inaugurado em 1911 e finalizado -  somente - em 1935. A unificação italiana: Risorgimento - ressurgimento em português - foi o processo de união territorial que resultou no surgimento do Estado-nação da Itália. As últimas regiões foram anexadas ao território italiano após a Primeira Guerra Mundial, em 1919. A unificação deu-se por completa em 1929, com a assinatura do “Tratado de Latrão”, entre a Igreja - criação do Estado do Vaticano - e o ditador Benito Mussolini. No ano de 1997 publiquei pela Scortecci Editora o livro “A Máquina de escrever” do poeta e jornalista italiano Giuseppe Ghiaroni (Giuseppe Artidoro Ghiaroni, 1919 - 2008). Ghiaroni foi um radialista brilhante. Trabalhou no Jornal “A Noite” e na “Rádio Nacional”. Autor de "Mãe", uma das novelas de maior sucesso da Rádio Nacional e transformada em filme em 1948. Assessorou ainda o humorista, ator, produtor, locutor e escritor Chico Anysio (1931 - 2012), na década de 1990, quando este produzia a "Escolinha do Professor Raimundo". A obra “A Máquina de escrever” foi lançada no programa do apresentador, escritor, dramaturgo e humorista Jô Soares (José Eugênio Soares, 1938 – 2022) e o evento foi um sucesso de público e venda. Poema “A máquina de escrever” ou “carta a sua Mãe”: “Mãe, se eu morrer de um repentino mal, vende meus bens à bem dos meus credores: a fantasia de festivas cores que usei no derradeiro Carnaval. Vende esse rádio que ganhei de prêmio por um concurso num jornal do povo, e aquele terno novo, ou quase novo, com poucas manchas de café boêmio. Vende também meus óculos antigos que me davam uns ares inocentes. Já não precisarei de duas lentes para enxergar os corações amigos. Vende, além das gravatas, do chapéu, meus sapatos rangentes. Sem ruído é mais provável que eu alcance o Céu e logre penetrar despercebido. Vende meu dente de ouro. O Paraíso requer apenas a expressão do olhar...” Quando unifiquei os meus olhos, pela primeira vez, no monumento em homenagem ao Rei da Sardenha, Vítor Emanuel II, lembrei-me do poeta Giuseppe Ghiaroni. Isso – talvez – explique, gostar cada vez mais do monumento, apelidado pelos Romanos de máquina de escrever. 




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