Eu sei e todos nós sabemos que escritor – iniciante
ou não – tem “frescurite aguda” na hora de escolher a foto do verso ou da
orelha, para compor a arte de capa. O drama – nas casas editoriais – é tratado
como um parto selvagem e cruel. O bicho pega! Já tive até cancelamento de
contrato. Síndrome de imortalidade? Talvez. Nos anos 1990, na sede da União
Brasileira de Escritores, na Rua 24 de maio 250, na cidade de São Paulo, o
escritor e publicitário Ricardo Ramos (1929 – 1992), filho de escritor
Graciliano Ramos (1892 – 1953) e pai do atual presidente da entidade, Ricardo
Ramos Filho, chamou-me de canto e, apontando o dedo para uma foto impressa na
orelha de um livro, fez um pedido formal: “Scortecci, está vendo essa foto?”.
“Sim”, respondi. “É ela! A escolhida! É com ela que quero ser lembrado.” Algo
assim. E assim foi. Quando Ricardo Ramos faleceu, em 1992,
imprimimos nas oficinas da Gráfica Scortecci a tal foto imortal, num pôster de
1/4 de folha, com mensagens de vários amigos escritores, em sua homenagem.
Ricardo Ramos foi velado na Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche,
na capital paulista, e o pôster foi distribuído aos
presentes. Guardo uma cópia no memorial da editora. Escrevi: “Gostava
dele aos trancos e barrancos!”. Ricardo Ramos foi um alagoano difícil e amoroso. Um crítico justo e feroz. Não gostava de dar
entrevistas e, quando falava, mordia e assoprava, sempre com bom humor. Um dia,
reunidos na residência do crítico literário Fábio Lucas, a escritora Lygia
Fagundes Telles, declarou: “Ler Ricardo Ramos – para quem o conhece – é o mesmo
que escutá-lo”. Inconfundível e único. Guardo até hoje sua voz no meu coração.
No início dos anos 1980 – nos primórdios da editora – recebi uma ligação da
poeta e tradutora Dora Ferreira da Silva (1919 – 2006), autora de muitos
livros, ganhadora do Prêmio Jabuti e editora da revista “Cavalo Azul”.
“Scortecci, quero editar a revista ‘Cavalo Azul’, número 10!”. “Perfeito”,
respondi. Marcamos então um encontro no saguão de entrada da Biblioteca Mário
de Andrade, na cidade de São Paulo. Não conhecia Dora Ferreira da Silva,
pessoalmente. Como reconhecê-la? Os buscadores Yahoo (1994) e Google (1998) não
existiam. Difícil acreditar nisso! A Internet era para poucos e somente entrou
na vida da Scortecci Editora no ano de 1989, com a compra de um poderoso
computador 268. Tinha um livro da escritora
na estante, com foto na orelha. Sorte! Reli a obra e fui ao encontro,
carregando o exemplar do livro “Jardins”, publicado
em 1979. Publicação recente, portanto. Sou exageradamente pontual e não gosto
de atrasos. Nem de desculpas! Na mesma hora – pontualmente – adentrou no saguão
da biblioteca Mário de Andrade uma senhora idosa e encapuzada. Fazia frio em
São Paulo. Não devia ser ela, concluí. Buscava pela foto uma mulher jovem,
bonita, com seus 40 anos de idade. Depois de uns 15 minutos de espera e já
impaciente, a senhora – que me olhava insistentemente – se aproximou e
perguntou: “Você é o Scortecci?”. “Sim.” “Eu sou a Dora Ferreira da Silva: não
está me reconhecendo?” “Não”, respondi. Fui ríspido, confesso. Abri o livro e
mostrei a foto de referência. Ela sorriu. Disse-me, sussurrando: “Um pouco mais
jovem, talvez”. “Muito!”, retruquei. Ela justificou: “É do final dos anos 1960.
Gosto dela! Está nas orelhas dos meus últimos livros”. De volta à editora –
curiosamente – tratei de pesquisar e descobrir a sua idade: 71 anos! Fui cruel.
Perdão Dora Ferreira da Silva! O post é um pedido de desculpas. No meu último
livro de poesias “Dos Cheiros de Tudo – Memórias do Olfato", publicado em
2019, tive um ataque inesperado e incontrolável de “Síndrome de Imortalidade”,
na hora de compor a arte da capa. Escolhi uma foto de 2015, tirada em um evento
literário na Livraria da Vila, em São Paulo. Gosto da foto: um pouco mais
jovem, talvez.
João Scortecci