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NAVIO NA GARRAFA NO RIO DA BOCA DO ANZOL

Uma história de marujo. Era jovem, quase um menino. Nasci na boca do Rio do Anzol, que, feroz e afoito, afogava-se – dia e noite – na imensidão do mar das garrafas. Escrevi o bilhete à mão. Lápis e papel. Dois poemas de amor, uma graça de dor – temporal – e uma despedida de fim. Tapei a garrafa com rolha de cortiça e nadei junto, lado a lado, até o encontro profundo das águas do mar. Parei. Impossível ir adiante, vencer o vento, o cansaço e a correnteza das almas. Exausto, abandonamo-nos à deriva, na direção do destino incerto. Disse, então, para as águas: Segue e vai. Inglória – nome do amor escrito no bilhete da garrafa – nunca soube dos poemas que lhe enviei e nem do ácido – amargo – das palavras seladas no dorso do navio na garrafa. Nunca! Inglória não era mulher da boca do Rio do Anzol. Tinha vindo de outro mundo: da cidade grande. Não tragava cachaça, não cuspia farinha nas águas do mar e não mastigava tripa de boi. Não era do dia qualquer – das tardes ingênuas – e nem dos pecados do corpo nu. Um anjo torto, de asas. Era barro – trincado – dos infernos. Chegou com a maré alta, em dia de lua cheia. Azeda, bela e cruel. Não sabia fazer danação, brincar de beijo estralado, chorar por qualquer aventura, rir por rir, desbragadamente, molhar os pés de sal nas águas do mar e nem gritar de amor, no silêncio do gozo da ponta da praia. Inglória sabia das coisas da cidade grande e nada mais. Jamais havia pegado caranguejo na boca do Rio do Anzol. Veio da dor, das linhas rabiscadas na folha de papel, do lápis de ponta quebrada e do azedo do sangue ferido. Veio e se ocupou de mim. Ficou cunhada no sono ruim, no pesadelo da ressaca das águas da morte. Inglória não era nascente. Não desaguava, nunca! Nem urinava na beira do rio, nas tardes quentes do verão. A garrafa, então, precipitou-se pela última vez, mar adentro, na direção do cemitério de corpos. Lembro-me do vento forte que soprou no delírio da partida. Intenso e biruta: tomando rumo na direções do fim. O tempo havia virado! O mar é um desejo impreciso! Lembro-me dos cardeais – dos versos – dos poemas. No primeiro – curtíssimo –, falava do eu náufrago, e, o segundo, da vida que foi sofrer de amor na boca do Rio do Anzol. E a garrafa - então - sumiu de vez, no longe dos olhos e do tempo.

João Scortecci