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JOANA, A “TILÓGRAFA” PROFISSIONAL

A história é antiga. Dá minha adolescência, no Ceará do final dos anos 1960. Joana, cansada e desgostosa do serviço diário de arrumação e faxina, em uma casa com quase meia quadra de extensão, protestou: “Dr. Luiz, eu vou embora hoje mesmo!” Papai perguntou: “O que aconteceu, Joana?”. Silêncio. Mamãe Nilce, de olhos arregalados, ficou esperando qual seria a justificativa de ela ir embora, assim, de repente, após anos de casa. Joana havia sido minha babá - felizmente cresci – e depois arrumadeira, faxineira e ajudante de copa. Tenho saudade dela. Eu era a sua “danação”. O seu pecado, talvez. Quando criança, banhava-me em bacia com água morna. Na bacia da lavação, costumava colocar uma colher generosa de açúcar. Mamãe Nilce - de olho nela – perguntava, sempre: “Joana, o que você está fazendo?”. Respondia, sorrindo: “É para ele ficar docinho!”. Mamãe Resfolegava: “Não é para bolinar o menino.” ”E vê se lava – também – o pescoço e os pés dele. Estão imundos!”. Joana balançava a cabeça concordando e, demoradamente, banhava-me com mãos de mulher. Antes de Joana, Das Dores foi a primeira babá da casa. Cuidava dos meus irmãos mais velhos, Luiz e José. Era ela quem nos colocava para dormir, no horário do boa-noite, pontualmente às 20 horas. Alguém gritava: “Das Dores, caga a luz!” E Das Dores respondia, também aos berros: “Já caguei!”. Risos. Joana era da cidade de Tauá, da região do sertão dos Inhamuns, do coração do estado do Ceará. Explicou, finalmente: “Eu vou estudar para ser uma tilógrafa profissional. “Tilógrafa?” Silêncio. Papai Luiz - na sua calma de sempre - olhou para a mamãe Nilce, bebeu água do copo e disse: “Joana, parabéns! Apenas uma pergunta: o que é mesmo ‘tilógrafa’?” Joana esticou os braços e movimentou os dedos da mão, mimicamente ensaiando batê-los num teclado de máquina de escrever. “Datilógrafa?”. “Isso. Vou ser uma tilógrafa de oito dedos!”.  Joana partiu na manhã do dia seguinte. Chorou muito. Joana era querida e merecia toda a sorte do mundo. Voltou - do nada, sem avisar - um mês depois. Entrou na casa e guardou suas coisas no quarto. Papai e mamãe nada disseram. E o assunto ficou por aquilo mesmo. Em março de 1972, fui morar na cidade de São Paulo. Joana ficou. Alguns anos depois, voltei, de férias, e Joana não estava mais na casa. Havia partido. Família que se ama é assim mesmo. Todos, um dia, acabam voltando, pródigos que são, mesmo que seja apenas para arrumar no coração nossas lembranças no tempo.

João Scortecci