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DENTADURA NO COPO E JOHNNIE WALKER CAWBOY

Eu o conheci - isso nos anos 1960 - como Zé Maria. Provavelmente José - primeiro nome - e um sobrenome, que desconheço, infelizmente. Seu apelido: Cabeção! Simples, amigo, humilde e trabalhador. Adorava uma prosa. Trabalhou com o meu pai Luiz durante alguns anos no Grupo J. Macedo - e depois - por conta própria - abriu um pequeno comércio, na região central da cidade de Fortaleza, de roupas masculinas, acessórios e gravatas. Pilotava uma lambreta italiana, vermelha e branca, e com ela fazia entregas pela cidade. Vez por outra ia visitar o meu Pai - lembrar os bons tempos - e beber uísque Johnnie Walker, que papai comprava no Porto do Mucuripe. “Zé vai uma lapada!” Era a deixa! Papai “judiava” do amigo. Adorava vê-lo desesperado, sofrendo, doido para beber. “Luiz, apenas uma lapada, pouco, para limpar o sangue!” Dizia, sempre. Mamãe Nilce gostava do cerimonial, das piadas e bebia junto. “Nilce, abre um vidro de espiga de milho em conserva pra comer de tira-gosto!”. Papai Luiz - com parcimônia - quebrava o lacre e colocava o litro de Johnnie Walker na frente dos olhos do Cabeção. Ele tremia e suspirava. "Luiz, mais uma e eu vou embora!”. "Outra, por favor!" ”Mais uma, para finalizar!”. “Que tal uma saideira?”. Bebiam até o litro chegar no osso. "Zé Maria, não faça desfeita. Termina!" Cabeção, então, bebia num gole gigante, os dois últimos dedos da garrafa de uísque Johnnie Walker. Papai Luiz, então, “arrastar” o Zé Maria, até a Rural e o levava para casa, bêbado, trançando as pernas. Sua mulher - Maria? Talvez - o aguardava no portão. Depois de alguns anos descobri que mamãe Nilce ligava pra ela e avisava: “O Zé Maria está aqui papeando com o Luiz!”. Era o sinal. A lambreta, vermelha e branca, dormia no terraço lá de casa, esperando o dono, voltar para pegá-la, de ressaca, no dia seguinte. No ano de 1974, Eu e meu irmão José, já morando em São Paulo, recebemos numa tarde de domingo, uma ligação do Cabeção. Surpresa! Contou que o seu negócio havia prosperado e que agora comprava mercadoria diretamente de um atacadista em São Paulo. Perguntou: “Posso dormir ai no apartamento de vocês alguns dias?”. E assim foi. Ia e voltava a cada quinze dias. Trazia malas grandes, vazias, uma dentro da outra, enchia de mercadoria e voltava, apressado, para Fortaleza. E num saco de supermercado, uma garrafa de uísque Old Eight. "É presente!" Dizia, sempre. Bebia, sozinho. Dormia na sala e roncava feito um Leão faminto. Um dia, Zé Maria, sumiu. Escafedeu-se! Deixou as malas na sala e no armarinho do banheiro, dentro de um copo com água, uma dentadura e uma escova de dente. Meu irmão José, quando viu aquilo, gritou: “Que nojeira!” Corri para ver o que tinha acontecido. Confesso: a cena era de filme de terror. Uma dentadura suja - ainda carnívora - afogada num copo e uma escova de dente, com cerdas sujas e desalinhadas. Lavamos o banheiro e passamos álcool no armarinho da pia. A “dentadura” ficou por lá, viva, sangrando, uma eternidade. Cabeção, alguns dias depois, reapareceu, cabisbaixo, envergonhado, talvez. Pegou as malas, sua dentadura, a escova de dente e em silêncio, partiu. Deixou no bar - de presente - um litro de Old Eight. Os tempos eram outros: bebíamos, na época, Campari, vodka Orloff, uísque Passport e vinho Almaden. Old Eight não. Zé Maria - o piloto da lambreta italiana - lapou-se, de vez. Lambretou-se! 

João Scortecci