Aprendi a pregar botões quando vim morar em São Paulo, no ano de 1972. Comprei um dedal, um pacotinho com agulhas e dois tubos de linha: um da cor branca e outra da cor preta. O difícil, na época, era enfiar a linha na cabeça da agulha. Segredinho: molhar a ponta da linha com a língua! Fácil, quando se sabe. E, também, a engraxar sapatos. Importante! Em 1976, no serviço militar obrigatório, no 2º Batalhão de Guardas, Parque Pedro II, São Paulo/SP, tornei-me craque em pregar botões. A falta de “unzinho” no uniforme militar era considerado alteração grave. Soldado Raimundo - O Anjo Negro - era forte, grande, mais de dois metros de altura, pobre e de família humilde. Havia sido na adolescência cortador de cana na região de Limeira, interior de São Paulo. Seu sonho: engajar e fazer carreira no exército. Raimundo não gostava de tomar banhos, nunca. Depois de três meses no quartel, o cheiro era insuportável. No calor, então: ninguém merecia! O tenente de serviço do dia, emperiquitado com a situação, ordenou-me, então: Você e mais 4, peguem o soldado Raimundo - na marra - e o levem direto para o chuveiro. “Não dá mais!” Raimundo, o Anjo Negro, deu socos, chutes, mordidas, resistiu feito um leão. O jeito foi chutá-lo no meio das pernas e outro - eu, no caso - aplicar-lhe, uma chave de pescoço. Funcionou. Entramos - todos - juntos, com farda e tudo, no chuveiro. Água fria! O tenente - que dava as ordens e coordenava a operação - ordenou-nos, então: “Tirem a roupa dele. Banho completo, com sabão e tudo!”. Foi nessa hora que o soldado Raimundo apelou, de vez: “Vou matar todos vocês!”. Arrancamos primeiro a blusa e depois as botas e as calças. O Anjo negro estava “peladão”, não usava sunga ou cueca. Começamos, então, a ensaboá-lo. “Lava tudo!” era o tenente tagarelando. Minha sorte - sorte? - era que eu segurava o Raimundo, pelo pescoço. “Se eu soltar ele escapa!” Foi a minha deixa, na hora do sufoco. Funcionou. O passa-sabão e esfrega ficou aos cuidados do soldado Abreu, que fechou os olhos e fez o serviço completo. O soldado Silva segurou os braços. O soldado Paiva, a perna direita e o soldado Pinheiro, a perna esquerda. Gritava: "Vou matar todos vocês!". O que aconteceu depois - previsível - todo ensaboado, mais liso que quiabo, foi o Anjo Negro escapar, até com certa facilidade. “Segura! Segura!” E nada. Levei uma cotovelada na boca. Soldado Abreu um chute no estômago, soldados Paiva e Pinheiro, nocauteados, no canto do banheiro. O tenente - confiante da patente - levou um murro no queixo e perdeu dois dentes da boca. Raimundo saiu nu, todo ensaboado, correndo pelo pátio do quartel. Gritaria geral. “Pega! Pega!” Mas ninguém conseguiu ou tentou pegá-lo. Lembro-me - até hoje - das ultimas palavras do soldado Abreu, antes de desmaiar e bater com a cabeça no canto do vaso: “O problema foi o sabão!” E foi.
João Scortecci