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O PERU “ADESTRADO” DE NATAL

Lá na Fortaleza dos anos 1960, todo mundo - de um jeito ou de outro - se conhecia. Sabia-se onde cada um morava, o que fazia da vida, nome da mulher, do marido e dos filhos, se tinha posses ou não e, principalmente, se era “da sociedade” ou alguém importante. Meu pai Luiz era conhecido e respeitado engenheiro e carregava no sangue cearense o legado do seu pai, João Batista de Paula, alcunhado de “Batista da Light”. O golpe do peru de Natal correu solto naquele ano, e nele também caíram vários “conhecidos”. A ceia de Natal, naquela época, era planejada com antecedência. Era tradição ganharmos de presente peru, galinha da angola, leitão, coelho e cabrito, para engordarem até às festas. O quintal de casa era grande e tinha espaço para o confinamento. Apenas uma recomendação: nada de criar laços afetivos com a bicharada. Desde criança aprendi a preparar peru, galinha da angola, leitão, coelho e até cabrito. Faca afiada, cachaça e machadinha eram as ferramentas do bom serviço. O segredo era único: embebedar o animal. Já tive - uma única vez - problema com um leitão esperto, desconfiado da sorte, que me obrigou a beber junto. Foi uma tragédia: errei o alvo. Ele continuou sóbrio - sorridente - e eu caí bêbado no chão. Um vizinho - empregado do meu tio - teve de terminar o serviço. Eram pouco mais das 8 horas da manhã de um dia de novembro, papai já havia saído para o trabalho, quando a campainha da porta de casa tocou. “Quem será?”. Minha mãe Nilce, ainda de penhoar, atendeu. Era um moço - simpático e educado - carregando debaixo do braço um peru vivo. “D. Nilce, o patrão mandou entregar o peru para a ceia de Natal. Onde solto o bicho?”. Minha mãe, atrapalhada e confusa, indicou o caminho do quintal e pediu que eu fosse junto. O moço limpou os pés no carpete da entrada, pediu licença e soltou o peru no quintal. “D. Nilce, o doutor pediu para eu levar o smoking dele, sapato social, camisa branca e a gravata borboleta. Pediu para eu aproveitar e deixar na lavanderia.”. “Sim, claro.” Em segundos, mamãe Nilce juntou tudo e entregou a encomenda para o mensageiro, que subiu num jipe e foi embora. Trinta minutos depois - não mais que isso - a campainha tocou novamente. “Quem será desta vez?”. Era novamente o mensageiro. “D. Nilce, perdão. O patrão pediu que eu levasse de volta o peru e trouxesse ele já sangrado.”. “Sim, claro, é melhor.”. “João, vai lá e ajuda a pegar o peru”. Eu fui. Estranho foi ver o peru, ao avistar o mensageiro, correr - desbragadamente - para os seus braços. “Adestrado?”, perguntei. O moço catou o peru, subiu no jipe e foi embora, para nunca mais voltar. Escafedeu-se! O golpe - naquela semana, foi isso que o delegado disse - já havia sido aplicado em mais de dez residências do bairro. Naquele Natal de 1960 não comemos peru, e papai - puto da vida - recusou-se a ir ao baile de réveillon do Ideal Clube. Foi o único ano em que não desfiei peru para a noite de Natal, tradição na família.

25.12.2021