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DESPEJO DA UBE

No Ceará dos anos 1960, velho morria de arteriosclerose, doença degenerativa da artéria. Foi assim com o meu avô paterno, Batista, o “Batista da Light”. Não se morre mais – felizmente – de arteriosclerose. Hoje, morre-se de demência e outros esquecimentos. Batista adorava feijão com toucinho. Prato – sagrado e farto – de todos os dias! Com o “feijão gordo”, comia uma xícara de farinha crua e arroz cozido no colorau. Dizia, sempre: “A gordura fica nas entranhas da farinha.” Depois, para ajudar com as “adiposidades” do toucinho, chupava algumas laranjas-lima. Por fim, o café preto. Sagrado e quente. O poeta Mário de Andrade (1893 - 1945), o mais paulistano de todos, segundo Marcos Rey, foi um dos pioneiros da poesia moderna brasileira, com a publicação do livro Pauliceia Desvairada, em 1922. Relendo seu poema “Ode ao burguês”, dei de cara com o prato feito em versos: “Eu insulto o burguês-funesto!/ O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!/ Fora os que algarismam os amanhãs!” Mário de Andrade morreu jovem, com apenas 51 anos de idade. Não gostava de toucinho. Vez por outra – no pedal de bike, pelo bairro paulistano da Barra Funda – subo pela Rua Carlos Drummond de Andrade e entro, velozmente, na Rua Lopes Chaves. O sobrado de Mário, o de número 546, ainda está por lá. Até quando? Não sei. Desvairado que só ele. Simples e belo. Espio pela janela em busca de Macunaíma. Não o vejo. Inútil “algarismar” passados. Na casa, projeto do arquiteto Oscar Americano, Mário viveu de 1921 até 1945, quando adoeceu e morreu. Hoje, no endereço funciona – creio – a Oficina Cultural Casa Mário de Andrade. Quando do despejo da União Brasileira de Escritores – UBE, no dia 7 de maio de 1994, de sua sede na Rua 24 de Maio, 250, 13º andar, centro, na capital paulista, foi a Casa Mário de Andrade que acolheu a entidade de escritores para encontros e reuniões da diretoria. O mobiliário da UBE – jogado brutalmente pelo INSS no calçadão da Rua 24 de Maio – foi levado para um depósito alugado. Caio Porfírio Carneiro – secretário executivo da entidade, na época – ligou-me, desesperado, de um orelhão da Praça da República: "Scortecci, pelo amor de Deus, o que faço?" Contratei, então, um caminhão – dos grandes – e aluguei, de pronto, um espaço em um “guarda-tudo”. Juntei funcionários da gráfica e da editora, e providenciamos a guarda do patrimônio da UBE, a mais antiga entidade de escritores do Brasil. Quase ninguém sabe disso. Ou sabem? Talvez, desavisados de tudo, optaram pelo esquecimento dos fatos. Mais fácil, creio. Depois, por algum tempo, dois ou três anos, não mais do que isso, ocuparam uma pequena sala na Rua Barão de Itapetininga. Também prontamente, tornei-me o fiador e o responsável pelo aluguel do imóvel. Foi assim. Quando vejo um pedaço de toucinho, lembro-me do Batista, do Mário de Andrade, do amigo Marcos Rey, do trágico despejo da UBE e, mais do que tudo, da xícara de farinha crua com arroz cozido, esquecida no tempo, no melhor de um dia qualquer, com muito colorau.