Na Fortaleza dos anos 1960, todo mundo - de um jeito ou de outro - se conhecia. Cidade pequena: pouco mais de 500 mil habitantes. Meu pai Luiz, engenheiro, conhecido e respeitado, funcionário do Grupo J. Macedo, carregava ainda, no sangue, o legado do seu pai, João Batista de Paula, alcunhado de “Batista da Light”. O golpe do peru de Natal do ano de 1965, pegou a todos: ninguém escapou. Um particularidade do golpe: Um único malandro e o seu peru adestrado! A ceia de Natal, naquela época, era planejada com até dois meses de antecedência. Era tradição ganharmos de presente para a ceia, perus, capotes (galinhas da angola), leitões e cabritos, para engorda. O quintal de casa era grande - meio quarteirão - e tinha bastante espaço para o confinamento. Apenas uma recomendação do meu pai Luiz: Nada de criar laços afetivos com a bicharada! Dizia, sempre. Desde criança aprendi a sacrificar e preparar perus, capotes (galinha da angola), leitões e cabritos. Ferramentas: faca afiada ou machadinha, cachaça e frieza. O segredo era o de sempre: primeiro embebedar o animal e depois fazer o serviço. Já vivi - uma única vez - problema sério com um leitão esperto, desconfiado da sorte, que me obrigou a beber junto. Foi uma tragédia: fiquei bêbado e errei o alvo! Ele continuou sóbrio - sorridente - e eu caí duro no chão. Cachaça danada! Um vizinho - empregado do meu tio Zanzão - teve de terminar o serviço. Acontece. Vamos, então, ao golpe do peru: Eram pouco mais das 8 horas da manhã, início de mês de novembro, papai já havia saído para o trabalho, quando a campainha do portão de casa tocou. “Quem será?”. Minha mãe Nilce, ainda de penhoar, atendeu. Era um moço - simpático e educado - carregando debaixo do braço um peru vivo. “D. Nilce, o patrão mandou entregar o peru para a ceia de Natal. Onde solto o bicho?”. Minha mãe, atrapalhada e confusa, indicou o caminho do quintal e pediu que eu fosse junto, mostrando o caminho. O moço limpou os pés no carpete da entrada, pediu licença e soltou o peru no quintal. “D. Nilce, o doutor pediu para eu levar o terno dele, completo, camisa branca, abotoaduras, gravata, meias pretas e o sapato social. Disse que tem um almoço importante, com o governador, no Clube Náutico. “Sim, claro.” Em segundos, mamãe Nilce juntou tudo e entregou a encomenda para o mensageiro, que subiu num jipe e foi embora. Trinta minutos depois - não mais que isso - a campainha tocou novamente. “Quem será desta vez?”. Era novamente o mensageiro. “D. Nilce, perdão. O patrão pediu que eu levasse de volta o peru e o trouxesse já sangrado!”. “Sim, claro, é melhor.”. “João, vai lá e ajuda o moço a pegar o peru.”. Eu fui. Estranho foi ver o peru, ao avistar o moço, correr feliz para os seus braços. “Adestrado?”, perguntei. Silêncio. O moço catou o peru, subiu no jipe e foi embora, para nunca mais voltar. Escafedeu-se! O golpe do peru adestrado - foi o que o delegado explicou - foi a golpe do ano em Fortaleza. Mais de quinze vítimas! No Natal do ano de 1965 não comemos peru desfiado. Mamãe Nilce fez pernil e macarronada, com molho de tomate. Vez por outra - com o coração avoado - penso no peru adestrado. Foram, apenas, 30 minutos de presença, não mais que isso. Papai Luiz tinha razão: nada de criar laços afetivos com o bicho. É um perigo: o coração voa e o tempo não perdoa.
João Scortecci