O texto é tétrico. Perdoem-me. Tudo - mais ou menos – verdade! Gastromano era um sujeito estranho, do além-túmulo e engraçado. Uma figura! Adorava velórios. Não perdia um, isso na cidade de Fortaleza, dos anos 1960. Tudo com ele começava ou terminava na boca de um caixão de oito alças. Suas histórias eram hilárias: morto que acordou no meio do velório, fraudes, brigas, trapaças, desmaios e sabotagens. Estranhamente: não gostava de sangue! Conhecemo-nos no velório de uma idosa, mais de 80 anos de idade, que morava do outro lado da rua, na Av. D. Manuel, inquilina das muitas casinhas de propriedade da família Gurgel. Porta aberta, é o que manda a lei. Entrei, então, de curioso. Meu primeiro velório. Inesquecível. A falecida - coberta de flores - descansava no caixão, posto na mesa da sala de jantar da casa, com a cabeça amarrada e algodão enfiado nas narinas. Era praxe! Na sala: Eu e minha prima, dois anos mais velha. E, do nada, o penetra do Gastromano, na época, adolescente. Gastromano, foi até o caixão e com um palito de picolé, removeu os chumaços de algodão das narinas da idosa. Perguntei: O que você está fazendo? Minha prima também protestou: Isso é um desrespeito! Não! gritou. Gastromano sorriu e terminou o serviço. Removeu os chumaços de algodão. Disse-nos: Vejam o que vai acontecer! Não demorou muito. Das narinas da morta começaram a sair lombrigas. Deus do céu! Tapa logo isso. Pedi. No mesmo instante – no silêncio da sala – ouvimos vozes: “Tirem a moeda da minha boca!”. Perguntei: Quem está falando? Silêncio. Minha prima fugiu da sala, aos gritos. Eu fiquei, assustado. A voz, então, voltou: “Tirem a moeda da minha boca!”. Eu não! Tira você! Afastei-me do caixão e encarei o Gastromano. Ele riu, levemente. Notei que respirava pela boca e mexia os lábios. Estranhei. Demorei alguns segundos, para, então, descobrir tratar-se de uma farsa, uma brincadeira estúpida, do bandido do Gastromano. Enganou-me, fazendo parecer que a voz vinha do além. Caiu, então, na gargalhada. Perguntou-me: O que achou da minha apresentação? Sou ventríloquo! Justificou-se. Perguntei, então: O que é isso? Um artista que fala com o ventre, sem mexer os lábios, dando a impressão de que a voz vem de outro lugar. Os gregos antigos chamavam essa arte de ‘gastromancia’, e estava associada às práticas divinatórias da necromancia, usada para parecer que o espírito do morto estava presente para dar informações de além-túmulo. Desconhecia! Mesmo assim, não o perdoei. Fomos embora do cenário tétrico, de lombrigas e vozes do além. Minha prima desapareceu. Quanto ao ventríloquo do Gastromano, escafedeu-se! Jurei – e cumpro até hoje – ajudar, sempre, nos preparativos dos rituais fúnebres de amigos e próximos. Já fiz de tudo: vesti mortos, ajustei corpos em caixões, fiz discursos, declamei poemas e carreguei mais de uma dezena de caixões até a sepultura. Não tenho medo de alma penada. Minha avó Sarah dizia sempre: "Filho, não tenha medo dos mortos. Tenha medo dos vivos!"
João Scortecci