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PAPELADA DOS INFERNOS E OS INÉDITOS DO AMOR BANDIDO

Já editor de livros, num almoço de domingo, isso no ano de 1999, quase na virada do milênio, mamãe Nilce – depois de beber uma garrafa de vinho – confessou-nos, alegremente: “Vocês sabiam que o pai de vocês já escreveu um romance?” Silêncio. Papai – surpreso – com a “entrega”, emudeceu. “É verdade?”, perguntei, surpreso. Papai Luiz se enrolou todo e, sem saída, confessou: “Sim. Já cometi um romance!”. Risos. “Onde está o livro?”, insisti. “Perdeu-se!”, respondeu. E o assunto morreu ali. Durante anos duvidei do “simples” desaparecimento da obra. Quando mamãe Nilce faleceu, em 2003, e papai Luiz, já demente, estava numa clínica, vasculhamos o apartamento, mas o livro, infelizmente, não foi encontrado. “Pai e o livro?” Ele – distante e esquecido – respondeu: “O livro sumiu!”. “Qual era o título?” Ele, num lampejo de juventude, delatou-se: “Conceição, só eu sei!”. Mamãe Nilce, certa vez, deixou escapar o enredo: uma história de amor de um estudante de engenharia e uma jovem de nome Conceição! Papai gelou. Lembro que, quando o cantor Cauby Peixoto (1931 – 2024), cantarolava no rádio a música “Conceição”, papai Luiz tremia feito vara verde. Mamãe Nilce fazia cara feia e soltava fumaça pelo nariz. Conceição havia sido o grande amor do meu pai. Em 50 anos escrevendo, editando e imprimindo livros conheço muitas histórias de originais perdidos, destruídos, queimados, jogados fora. Muitas vezes pelos próprios autores, mas, quase sempre por alguém da família. As razões são muitas, pertinentes ou não. Acontece. E parte da vida e da história daquela pessoa desaparece. Uma vez acompanhei, de perto, uma desventura cruel. Um professor viúvo, respeitadíssimo no meio literário, com vários livros publicados e outros ainda inéditos, sofreu um AVC e morreu, aos 72 anos de idade. Uma de suas filhas – a mais velha – ligou-me e avisou de sua morte. Foi um susto. Gostava dele. No meio da conversa informou: “Jogamos tudo fora, uma papelada dos infernos! A escrivaninha e a poltrona de couro, um sobrinho levou. Ficou a máquina de escrever. Vocês querem?”. Perguntou e continuou falando: “Guardamos as roupas. Ternos de linho, sapatos italianos, gravatas de seda, abotoaduras e perfumes. O velho, você sabe, depois que enviuvou, andava nos trinques!”. “E os livros da biblioteca? E os originais inéditos?” Resposta: “Jogamos tudo fora, no lixo”. “E os exemplares que estão aqui no estoque da editora: o que faço?” “Não queremos nada!” E desligou o telefone. Foi quando, em 2001, criei o Portal Amigos do Livro e depois, o Livros para Todos, projeto voluntário, de formação e ampliação de bibliotecas públicas e comunitárias. A máquina de escrever ficou por lá. Não tive coragem de retirá-la. Sempre que presencio história igual ou parecida, lembro do sumiço do romance “Conceição” que o meu pai Luiz – jovem e apaixonado – escreveu. Mamãe Nilce deve ter dado fim nele. Hoje, quando escuto no rádio a música “Conceição” lembro do meu pai e do seu livro: “Conceição, só eu sei”. Inédito e bandido.

João Scortecci