Vovó Sarah gostava de contar histórias. E eu, de escutá-las. Botija, no Ceará, significa pote, cofre para enterrar dinheiro, ouro, joias, pedras preciosas e aloegos. “Sabia que no quintal da casa, perto da goiabeira, tem um tesouro enterrado?” Foi o que ela me disse, segredando. “Eu e Dionísia – que nos olhava, firme – que o enterramos, num inverno de chuvas.” “O que tem dentro da botija?” Eu quis saber. Segredo. Risos! Dionísia era uma mulher estranha, misteriosa, que cuidava da arrumação da casa dos meus avós paternos, desde sempre. Um detalhe, insignificante: Dionísia odiava vinho. Bebia cachaça, com gosto. Também fumava cigarros de palha e dormia em pé, igual espantalho. Duvidei da história – estão de brincadeira, pensei. E do nada, no inverno daquele mesmo ano, numa manhã de chuvas, tratei, então, de procurá-lo, na imensidão do latifúndio. “Dionísia, é verdade?” Ela balançou a cabeça, dizendo: "Sim. Tudo verdade. Juro!" Depois de quase um ano cavocando o quintal, desisti. A história do tesouro enterrado ficou então no passado, nas histórias da infância. Em 1971, mudei-me – definitivamente – para São Paulo. Antes, fiz da minha lancheira do Zorro – do pão com ovo de uma vida inteira – uma botija e a enterrei no silêncio do quintal. Dentro dela, acomodei meus aloegos: um estilingue (baladeira, de caçar calangos), algumas bilas (bolinhas de gude), um pião de pau, um pequeno canivete de aço, quatro rolimãs, cinco Marias, um pente de chifre de boi, um anel de caveirinha, uma gargantilha e fotos: eu bebê, nu, tomando banho numa bacia de aço, eu lobinho, eu escoteiro, eu aluno do Colégio Cearense, fotos da casa da Av. D. Manoel, foto da cadela Wanderleia, foto dos meus irmãos e primos trepados num pé de seriguela, eu e meus pais – Luiz e Nilce – na casa da Floresta e uma poesia de amor vencido. Escrevi: “Um dia eu volto!” Algo assim. Lacrei a lancheira do Zorro com cola Araldite e a coloquei dentro de um saco plástico azul. Enterrei fundo, no mirador do sol poente, entre a goiabeira do pirata e o coqueiro de água mineral. Deve estar por lá, ainda. Vovó Sarah faleceu em 1982. A Vila Santa Terezinha, abandonada, foi, então, demolida, o terreno foi vendido e hoje abriga o prédio e o estacionamento do Banco Central do Brasil.