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1976 O ANO QUE – AINDA – NÃO TERMINOU

Sonho é sonho. Interpretá-los – com discernimento – não é fácil. Capacidade para poucos. Descarto aqui, para não polemizar e não contaminar o post, os sonhos espirituais, as visões, os chamados, as revelações e as manifestações da alma. Escrevo para registrar um sonho que – vez por outra – ocupa-me o espírito. Sonho que vem e vai. No meu caso: único. Dizem –os entendidos – que sonhos que se repetem são alertas e avisos de coisas que deixamos em aberto, não encerradas corretamente ou ainda, assunto por resolver em nossas vidas. Talvez. Vamos, então, ao sonho “repeteco”. No ano de 1976, fui convocado para o serviço militar obrigatório, no 2º Batalhão de Guardas, na Companhia de Comando e Serviços (CCSv), Pelotão de Transportes, no Parque Pedro II, em São Paulo, Capital. Fui, durante 1 ano, o SD 1148. Orgulho-me em dizer que fui um soldado exemplar, não tive “alterações” e recebi, quando dei baixa, diploma de Honra ao Mérito. O BG não existe mais, foi extinto em 1992 e hoje, o prédio está abandonado e em ruínas. O BG tinha um lema: “A Guarda morre, mas não se rende!”. Impossível esquecer o significado desse “ideal” que marcou profundamente a minha vida. Talvez justifique o sonho “repeteco” de jamais me render, mesmo que o preço seja a morte. Vamos ao sonho: o telefone toca. Eu atendo. Recebo o aviso que fui “reconvocado” e que devo me apresentar, imediatamente. Explico tratar-se de um engano, que já servi, cumpri minha obrigação cível etc. “Apresente-se!” Insisto e digo que já não sou jovem, estou perto dos 70 anos, não tenho mais a força de um leão, olhos de lince e, mais do que tudo, sangue nos olhos. Não adianta. “É uma ordem!” Desligo o telefone, visto a farda verde oliva, calço as botas, alimento o meu FAL – fuzil automático leve – e me apresento, pontualmente, no 2º Batalhão de Guardas, no Parque Pedro II. Encontro o quartel igual ao que era no ano de 1976, imponente e invencível. “Eu já servi!” Mostro meu certificado de reservista, minha carteira de motorista militar, o meu diploma de Honra ao Mérito, algumas fotos, mas de nada adianta. Vejo-me novamente de serviço no P-5, portão do pelotão de transporte, trocando óleo da viatura, faminto e selvagem na pista “Cascavel” – cujo lema era “Quem erra deve, quem deve paga, quem paga, paga na hora!” –, no QG do II Exército, no Parque do Ibirapuera, no bandejão do quartel, comendo picadinho de carne e chupando laranja, no desfile militar de 7 de setembro, pilotando o Jeep do comandante Tenente-Coronel Pedro Luís da Silva Osório, que resfolegava, com o canto dos dentes: “Soldado, não deixa o motor da viatura morrer!” “Puxa o afogador!”. Num dos muitos sonhos, pergunto ao 1º Tenente Biágio, na época comandante do meu pelotão, hoje general: “Comandante, por que fui “reconvocado?”. Ele, então, olha-me nos olhos e responde: “A guarda morre, mas não se rende!”. Então, hoje, quase 50 anos depois, acordo, “não me rendo” e também “não me deixo morrer”, esperando, talvez, uma última missão, ou o aviso das coisas que deixei em aberto, não encerradas, devidamente e ainda por resolver, do incrível ano de 1976, que ainda não terminou.

João Scortecci