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1964 E OS MEUS 8 PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Em março de 1964 eu tinha oito anos de idade. Morava na Avenida D. Manoel, n. 1.086, na cidade de Fortaleza/CE. O dia 31 de março caiu numa terça-feira. Quando mamãe Nilce entrou no quarto – na manhã do dia 1º. de abril – eu já estava acordado, uniformizado, espiando pela janela do quarto, o tanque de guerra estacionado em frente de casa, à sombra de um pé de ficus, provavelmente infestado de “lacerdinha”, uma sátira ao político Carlos Lacerda. Mamãe Nilce disse: “Meninos, hoje não tem escola e ninguém sai de casa!” Feriado?, pensei. No quarto, dormíamos eu e meus dois irmãos: Luiz, com 14 anos, e José, com 13. Tomamos café da manhã em silêncio, no balcão de fórmica da cozinha – café com leite quente e pão sovado –, atentos às notícias da Rádio Dragão do Mar, num rádio Philco Transglobe. Papai Luiz, na sala, ao telefone, conversava demoradamente com o Marechal Juarez Távora (1898 – 1975), tio do então governador do Ceará, Virgílio Távora (1919 – 1988). Ficou quase uma hora murmurando ao telefone. Depois, disse: “Não saiam por nada. Não tenho hora para voltar!” Papai entrou na perua Rural Willys e saiu, velozmente. Certa vez – já adulto – quis saber. Papai desconversou. No dia 3 de abril de 1964, o jornal “O Povo” – da tia Lúcia Dummar –, publicou no editorial a seguinte nota: “A paz alcançada. A vitória da causa democrática abre o País à perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil.” Na minha inocência, até então, repetia o que mamãe tagarelava sempre: É a “revolução”. Em 1968, a tal “revolução”, repentinamente, mudou de nome. Passou a se chamar “golpe”, e, depois, “ditadura” e “repressão”. Ninguém – na época – quis me explicar o motivo. Em 1968, quando os movimentos contra a ditadura ganharam as ruas do País, veio, então, o Ato Institucional n. 5, o AI-5. Eu tinha 12 anos de idade. Foi o escritor e médico psiquiatra cearense Mourão (Antônio Mourão Cavalcante, 1948 – 2022), amigo da família e chefe-escoteiro no Colégio Cearense, quem primeiro me alertou sobre o que estava acontecendo no País. Mourão – estudante na época – havia andado pelas passeatas de Paris e durante um tempo teve de se esconder, sei lá onde. Mudei-me para São Paulo em 1972, no auge da ditadura e dos chamados "anos de chumbo". Foi em 1973, junto com meu irmão José, na época aluno da FAU/USP, que a ficha caiu e eu então, finalmente, eu soube o significado da  ditadura. “Por isso, a nossa ‘geração de 68’ foi a que mais caro pagou por sua rebeldia, através de prisões, tortura, exílio e até morte”, escreve Zuenir Ventura, em seu clássico “1968 – O ano que não terminou”. Depois de 60 anos do “golpe”, ainda me pergunto: o que aquele tanque de guerra estava fazendo estacionado em frente de casa, na Fortaleza de 1964?

João Scortecci