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CACO DE VIDRO ESPETADO NO PÉ

O “Eu” menino era danado. Muito danado. Quase sempre merecia ter as orelhas “puxadas” e “torcidas”, com força. Mamãe Nilce fazia isso com propriedade. Dizer que sinto saudade da tortura, seria covardia. Aos 11 anos de idade, talvez 12, eu andava espiando, pelo buraco do muro, o corpo nu da menina da vizinha, que, todo final de tarde, banhava-se com cabaça e água fria, na boca do poço artesiano. Puxava água da cacimba. Alimentava a cabaça e, depois, fartava-se, esfregando as mãos no corpo. Magrela, olhos negros, da cor de jabuticaba, parecia, sempre, estar no cio. Cabelos curtos, à la “Rita Pavone”. Quando andava na rua, empinava a bunda vazia de carne, além da conta. Sabia que estava sendo “bolinada” pelo buraco do muro e parecia não se importar com o olheiro intruso. Sonhava ser atriz, morar no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro e ser, um dia, mais famosa que a cearense Florinda Bolkan, de Uruburetama, interior do Ceará. Bolkan morou em Fortaleza e no Rio de Janeiro, antes de se mudar para a Itália, em 1968, e fazer carreira de sucesso no cinema. O que se sabe é que andou ali pelo bairro, no início dos anos 1960. O buraco do muro era miúdo, e nele, cabia um olho por vez. Com o tempo, a estrela do poço das águas, improvisou cantoria, dança sensual e até rebolado. Numa tarde de calor dos infernos, com o dedo apontando para o buraco quente - finalmente - me chamou para a briga. E eu fui. Veloz, com o sangue fervendo. Subi no muro de pronto, com a ajuda de um tambor velho de querosene. Pulei e caí - em cheio - num campo minado, apinhado de cacos de vidro. Um caco afiado, pontudo, enfiou no calcanhar do meu pé direito. Gritei de dor. Sangue. Rita Pavone, de deboche e mangação, gritava eufórica, do alto da boca na cacimba: “Te peguei!”. Pulei de volta o muro e corri, em disparada, até a mamãe Nilce, que pedalava a mil por hora, no terraço da casa, a sua incrível máquina de costura Singer. “Santo Deus! O que aconteceu?”. “Furei o pé com um caco de vidro!”. Papai Luiz, que havia acabado de chegar do trabalho, perguntou-me: “Qual foi a danação desta vez?”. Silêncio. Papai Luiz sabia e não sabia que eu andava espiando o banho da menina da vizinha dos fundos, pelo buraco do muro. Mamãe Nilce tentou tirar o caco de vidro do meu pé, mas papai Luiz, interveio: “Não”. “Agora não!” “Espera um pouco.”. “Quem sabe - desta vez - ele aprende a não fazer danação!”. Rita Pavone, algum tempo depois, mudou-se para o Rio de Janeiro. Foi o que me disseram. Nunca mais soube da estrela da boca da cacimba. Escafedeu-se! O buraco do muro foi fechado e ainda, de reforço, ganhou uma pintura de cal. Quem teria feito isso? Pensei. Voltei da escola e o cenário do crime já era outro. Tudo havia mudado. O tambor velho de querosene - que havia servido de escada - também havia sumido. O jeito foi esquecer Rita Pavone, o buraco do muro de "espiar" e o corte profundo do pé direito. Foi o que fiz. No santuário da Vila de Santa Teresinha - na Fortaleza dos anos 1960 - viver era algo - muito - perigoso.