Nunca ”pavimentei” sapatos no morto! Já colaborei separando roupas - as melhores encontradas - e ajudei no embelezamento do corpo. Três ou quatro vezes, acho. Dá trabalho! Dois deles - homens idosos - e queridos. Partiram dessa para melhor descalços, com meias de cor preta. Quando criança - isso lá no Ceará - tinha medo de defunto e alma penada. Muito medo! Os velórios eram caseiros e o caixão, com o morto, colocado na mesa da sala de jantar. Nada de cavaletes! Importante: a cabeça do morto - sempre - voltada para a porta da rua. Desconheço a razão. Superstição? Talvez. Com o tempo venci o medo e tornei-me um preparador, um ajudante fúnebre. Julgo, desde então, importantíssimo o trabalho. Aprendi “o que fazer no serviço” observando e assistindo filmes. Não sou fã de velórios, longe disso, mas não abro mão de ajudar com o caixão. Existem mais de duzentos tipos de caixões. No Brasil são feitos de pinus, com seis alças e oito borboletas de atarraxar. Lidar com elas - falo das borboletas - precisa de precisão emocional e jeito. Gosto de fazer coisas - isso desde criança - que ninguém gosta: vestir o morto, fechar o caixão, cuidar dos tramites legais, escolher as flores e escrever epitáfios. Ninguém deve partir deste ingrato mundo com o corpo feio, desarrumado e com roupas velhas. Não acho justo. Na concatenação do cerimonial gosto de tudo: silêncio, choro, velas, reza, água benta, abraço, aperto de mão, música, fofoca, risos, piadas e comida. Muita comida! Serviço completo. No meu desapego - anotem, por favor -, não abro mão de ganhar, também, serviço completo. Nada de sapatos e gravatas! Quero queimar escutando a canção “Tiro ao Álvaro” do mestre Adoniran Barbosa. Acessórios indispensáveis, todos obrigatórios: radinho de pilhas (pilhado, claro) e a bandeira do Palmeiras, que canta e vibra. Os velórios de hoje andam esvaziados, chatos e restritivos. E o pior: os caixões estão sendo “cortejados” por desconhecidos. Ninguém merece isso. Hoje acordei sentindo dores no corpo. Sinal que ainda estou vivo. Dizem - não sei se é verdade - que minutos antes da hora da morte, as dores da idade, todas, somem do corpo cansado de guerra. Aliviação total! Interessante saber. Nada mais que isso. Isso tudo depois de ficar sabendo que um conhecido - doente e nas últimas - comprou um par de sapatos novos para o seu velório. E de cadarço. Pasmem!
João Scortecci