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DOIDO, DOIDO MESMO E O VELÓRIO DO CHICO SALAME

Sozinho no velório do Chico Salame. Amigo do bairro, taxista. Vez por outra, batíamos papo. Até procurei alguém conhecido, sem sucesso. Somente a viúva, de nome Teresa, desmaiada, chorando aos gritos no canto da sala. Junto, colado no caixão, um sujeito estranho, magro, quarenta e poucos anos, perdido, olhando para o teto. Perguntei-lhe: Você é parente do Chico Salame?  Silêncio. Não respondeu. Continuou olhando fixo para o teto. Decidi, então, chegar junto: Qual o seu nome? Insisti. Fui direto, no fígado. O sujeito me olhou e sussurrou: Eu sou o doido, doido mesmo. Prazer, respondi. E você? Quis saber. Respondi, de pronto: O louco, muito louco. Ele sorriu. Disse-lhe, então: Sou o poeta louco, imperativo, inquieto, cheio de manias, muitas e que gosta de cometer versos! O doido, muito doido, fungou um catarro, cuspiu longe e resfolegou: Eu também, eu também! Ficamos ali, inertes, pensativos, aguardando o corpo do Chico Salame ser cremado no cemitério da Vila Alpina. O caixão baixou – escutamos as mesmas músicas chatas de sempre - e o povo, ligeirinho, foi embora. Escafedeu-se. Ficou a viúva, o irmão caçula do Chico, Eu e o Doido. Disse-me: Eu adoro funerais! Eu também, respondi. Perguntou-me, então: Você conhecia o gordinho? Sim, meu amigo. Respondi. Eu não! Respondeu-me. O doido, doido mesmo, resmungou: As pessoas são estranhas! Justificou-se. Concordei. Chico Salame era um gordo feliz. Querido por todos. Morreu no volante do carro. Dizem – não sei se é verdade – que deu trabalho para tirá-lo do carro. Mais de 140 quilos. Chico Salame foi o único gordo, que conheci, que tinha o pinto grande. Isso explica o apelido: chico Salame. Sua alegria: mostrá-lo! O doido, doido mesmo, então, devolveu-me a pergunta: É quem é você? Disse-lhe: Eu sou o louco, muito louco, que gosta de cometer poesias. Ele sorriu. Disse-me: Eu queria ser como você! Confessou-me. “Louco, louco mesmo? Não! Poeta, escrever um livro de poesias. Lembrei-me, então, da letra da música “Vaca Profana”, do Caetano Veloso: “Mas eu também sei ser careta / De perto, ninguém é normal / Às vezes, segue em linha reta / A vida que é meu bem, meu mal.” Perguntei-lhe, então, com caretice: “O que você está fazendo aqui no enterro do Chico Salame? O doido, doido mesmo, justificou-se: Esperando você! Silêncio. Foi a minha vez de cuspir longe, abraçar forte a Tereza, mulher do Chico Salame e ir embora. Antes, porém, digitei no celular do doido, doido mesmo, o número do meu celular. No início do ano ele, o doido, doido mesmo, trouxe-me um livro de poesias para publicar e lançar na bienal do livro. Oi louco!", gritou. Oi doido, respondi. Nos abraçamos, forte. Pediu-me, então, um agrado literário. Resmungou: Você escreve o prefácio do meu livro? Foi o que fiz. Doideira!  

João Scortecci