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ÁGRAFO, O POETA FILÓSOFO DO BAIRRO DE PINHEIROS

Ágrafo era um “grafo”. Mutável e finito. Um poeta da oralidade: do estado oral. Seus versos nunca – em tempo algum – foram escritos e – muito menos – impressos. Tudo ficava na cabeça de doido. Tinha memória de elefante! Era filho de um polímata, de nome Arquimedes, e de D. Vértices, uma récita. Ágrafo gostava de declamar poesias. Durante muitos anos, Ele e Vértices, fizeram parte da trupe das palavras soltas, do Largo da Batata, do bairro Pinheiros, na capital paulista. O grupo fez história no bairro. Viviam - pilhados - no pátio e no estacionamento do Mercado de Pinheiros. Quando dava: eu ia lá declamar junto. Eu o chamava de “poeta filósofo”. Depois que Vértices, sua mãe, morreu - de nó nas tripas - Ágrafo calou-se de tristeza e foi embora de tudo. Perdeu-se! Bebia e usava drogas. Arrombava carros como ninguém. Vez por outra abria o meu carro, um Monza Hatch, que ficava estacionado na Rua Mateus Grou e dormia no banco de trás. Ágrafo – poeta que nunca teve representação escrita – morava num cortiço da Rua Cardeal Arco Verde, cheio de escadas e portas, próximo à Praça Benedito Calixto. O local não existe mais. Foi demolido. Ágrafo esteve preso, ficou em cana alguns meses. Depois soltaram. Na época comercializava filmes de DVD pirata, numa barraca de camelô, na Rua Teodoro Sampaio. Voltou magro e doente. Ágrafo adorava histórias da Grécia Antiga. “Paideia! Paideia!” Gritava e resfolegava - sempre - nos seus versos de rua. O termo "paideia" deriva da palavra grega "paidós" (“criança”) e significa algo como a "educação das crianças" e a formação de um cidadão perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade. Algo assim. Certa vez, insisti para que publicasse um livro solo, com seus melhores poemas. Disse-me: “Não!” Justificava, sempre: “Gosto da oralidade da vida.” Num sábado de julho, bêbado, caiu e rolou do alto da escada, bateu a cabeça no portão de ferro do cortiço e sangrou, até à morte. Ligaram-me da delegacia. Não tinha consigo documento algum, apenas o meu cartão. Ágrafo – o poeta filósofo – foi enterrado como indigente. Tinha trinta e poucos anos e, no sangue, o domínio da oralidade poética. Mutável e finito. Relendo sobre a Grécia Antiga reencontrei no texto o conceito de “Paideia” e, adiante, no melhor das lembranças, o poeta Ágrafo, filho de Arquimedes e Vértices. Bons tempos! Pinheiros – depois de 42 anos – anda triste, diferente e vertical. Os sobrados – os poucos que ainda restam – estão sendo demolidos. Os amigos poetas morreram desta vida. Eu - teimoso que sou - continuo sóbrio e renitente, fazendo da vida - de doido - um poema sem-fim.


João Scortecci