Estou deveras espicaçado - não é palavrão, juro -, além da conta. Aflorado de ideias! Estou - agora, neste exato momento – tentando ler o que está escrito com letra miúda num pacote de arroz arbório. Preciso – urgentemente – de uma lupa! Ando pensando seriamente em comprar lupas, uma penca delas, na Internet das Coisas, e espalhá-las, perdidamente, no meio do caminho. Fazer o que faço com os meus muitos guarda-chuvas, com a meia dúzia de óculos de leitura, com os livros pilhados e perdidos no tempo e com os muitos pares de sapatos, todos iguais, da cor preta, que habitam os meus toques e trejeitos. Assim caminho e me sustento. Deixá-las – falo das lupas – arregaladas, de olho vivo, nos desejos do meu destino! É o que penso fazer, com brevidade. A representação mental é única: conseguir ler a letra miúda impressa no pacote de arroz arbório. Sei ligar o gás, acender o fogo, onde encontrar a panela, o prato, o copo e os talheres. Mexo com tudo, menos com a panela de pressão. Quando menino no Ceará dos anos 1960, uma delas explodiu e a tampa saiu pelo forro do teto. Tenho queijo ralado e fome: armadilhas para um bom risoto. E pensar que na infância - na minha, claro - não existia risoto. No máximo: arroz com coloral. Depois de “envelhecido”, tenho praticado provações, constrangimentos, esquecimentos e falácias. Ando colecionando palavras estranhas – mas que existem –, que não dizem nada, não pensam e, muito menos, refletem coisa alguma. Palavras sem sentido! Ando aguilhoado para fazer algo repto e instigante. Algo aguçado. Do nada, virei na mesa do escritório um pote cheio de clipes, tipo 3.0. Quando criança fazia com os clipes minhocas de aço, emendando um no outro. Exercício de paciência e de burrice plena. Melhor que meditação! Não satisfeito, contei-os, um por um, antes de acalmá-los, e jogá-los de volta, no abismo do pote. Outro dia, contei todas as azeitonas de um vidro e – imbecil que sou – também de um pote de pimenta biquinho. As minhas preferidas! Com risoto, então, um excesso de apuro e sabor! Coincidência dos demônios: ambos os vidros – de azeitonas e de biquinhos – armazenavam a mesma quantidade de unidades. Sacanagem! Descobri que azeitona é fruta e que pimenta biquinho é fruto. Desisti, de vez, de preparar o risoto de arroz arbório. Meus amigos gráficos de “embalagens” que me perdoem. Impossível navegar na leitura, assim. Vou pedir um polpetone, do restaurante Jardim de Napoli. Ando mexendo - novamente - na minha coleção de selos. Tenho recebido doações de selos, quantidade além do que dou conta de catalogá-los, por países de origem. Descobri que havia esquecido alguns selos da Índia, no pote com água, para tirar “o grude”. Ficaram lá, afortunados, desde o ano de 2020. A água secou, e os selos da Índia grudaram uns nos outros. Gandhi que me perdoe. Tragédia! Pretendo ainda concluir até o final do ano dois livros amasiados no Dropbox e um terceiro – novíssimo – inteiro na cabeça, pendurado no prego da porta, onde, na infância, ficava pendurado o saco de pão. Chegaram, pelo correio, os pedidos da semana: colírios, um HD externo, outra camisa do Palmeiras, com o meu nome impresso nas costas, um livro do Ubiratan Machado, sobre a história das livrarias brasileiras e um microondas, para o refeitório da editora. Não é fácil ser um imperativo e ainda com fome por arroz arbório. Ops! Perdão! Agora, com fome por polpetone. Outro dia, lendo sobre técnicas - segredos - de como acalmar um imperativo em estado de “transe”, encontrei uma dica das melhores: “Você sabe o que nos acalma?” Depoimento de um imperativo nível 3: “A convivência com outro desassossegado, de patente superior!” Tudo verdade. Na presença de um imperativo “aflorado” fico manso, dócil e pacato. Acordei aguilhoado. Não fui pedalar – volátil que sou – pela Paulicéia Desvairada. Logo hoje que o roteiro era navegar pelo bairro da Barra Funda, revisitar Mário de Andrade e outros. Chuva – miúda e contínua – na cidade de São Paulo. Espicaçado, penso no polpetone que tarda a chegar, na tampa da panela de pressão que explodiu e, até hoje, ainda voa, perdidamente, no meu mostruário de memórias. Depois de comer, eu me acalmo, juro.
João Scortecci
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