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SUASSUNA, JOSÉ FERREIRA, KARL MARX E O PERFIL IDEOLÓGICO DA ADOÇÃO

Ariano Suassuna, eu e mais alguns poucos, gostamos – desbragadamente – dos loucos, dos doidos de pedra. Suassuna declarou: “Eu tenho muito interesse por doido, pois eles veem as coisas de um ponto de vista original. E isso é uma característica do escritor também, o escritor verdadeiro não vai atrás do lugar comum, ele procura o que há de verdade por trás da aparência. O doido é danado para revelar isso! Eu gosto muito de história de doido. Não sei se é por identificação. Mas eu gosto muito. Eu tenho um primo, Saul. Uma vez ele disse para mim: Ariano, na família da gente quem não é doido, junta pedra pra jogar no povo.” Hoje conheci o simpático Karl Marx, um filhote de cão vira-lata, do José Ferreira, pedinte que trabalha no farol da Avenida Pedroso de Moraes, no bairro Pinheiros, na cidade de São Paulo. Ferreira – vez por outra – ganha o doce da minha sobremesa e mais um agrado monetário de R$ 2,00 ou R$ 5,00 reais, dependendo do dia. Faz parte! Quando estou atravessando a rua – farol aberto ou não, isso pouco importa –, Ferreira pula na frente dos carros, abre os braços e pede passagem para o seu amigo João. José Ferreira – trinta e poucos anos – tem barraca, fogareiro, panela, faca de corte, pratos e talheres. Tudo desarrumado e espalhado na calçada. Ano passado, José Ferreira foi atropelado. Hoje anda com dificuldade e puxa da perna direita. Sempre que ele me vê, logo convida: “Sr. João, quer almoçar comigo?”. “Não, obrigado.” Curioso que sou, indago: “O que tem de bom hoje?”. Ferreira, então, lista o cardápio, nos detalhes de um Chef: “Macarrão, arroz e uma mistura”.  Perde tempo no tempero e reclama – sempre – do carvão que ganha de uma padaria do bairro. “E a arrecadação do ponto: como anda?” “Ruim. Já foi melhor. O farol anda atrapalhando o negócio. Antes demorava mais e dava tempo para cobrir duas fileiras de quatro carros. Agora, não.” “Compreendo. E ele, como se chama?” Apontei para o cão que se coçava feito maluco. “Karl Marx. Foi presente do dono de uma cadela do Largo da Batata, que pariu um macho e duas fêmeas.” Pensei em pegar o Karl Marx no colo e lhe fazer um agrado. Adoro vira-latas! Desisti. Parecia sujo e tomado por pulgas. “Ferreira, uma pergunta: por que o nome Karl Marx?” José Ferreira apontou o dedo na direção do cão e me disse: “Olha o pelo dele, farto, branco e preto. Lembra a barba profética do Karl Marx?” “Lembra, sim”, respondi. E sugeri: “Você deveria dar um banho nele. O coitado está se coçando todo.” “Melhor não”, justificou-se. “Não?” “Não. Depois vão dizer que o Marx é cachorro de rico – egoísta – e isso não combina com o seu semblante ideológico.” “Ferreira, que doideira! Explica, por favor.” “Comunista não gosta muito de tomar banho.” “Ferreira, quem disse isso? Marx foi um filósofo e economista socialista, que escreveu ‘O Capital’ – provoquei –, então: comunista toma banho, não fede a bode, mas dizem que gosta de comer criancinha!” Joguei o anzol. Ferreira olhou-me nos olhos, piscou para o Karl Marx e mudou de papo. “Ração é muito cara?” “Muito”, respondi. “Então eu proponho socializarmos o Marx.” Não entendi. Fui embora pensando na oferta generosa do doido de pedra do José Ferreira. Que Suassuna não me escute! Confesso: sempre quis ter um vira-lata de rua, e Karl Marx, no melhor do ponto de vista original, seria uma nobre adoção ideológica. Segunda-feira, no mais tardar na terça – eu prometo –, vou socializar o vira-lata do Karl Marx. Na dúvida: comprar-lhe ração e vê-lo crescer – livre e solto – na Paulicéia Desvairada.

João Scortecci