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Na Linha do Cerol / Samuel Penido

Há um olhar para trás, sim, mas um olhar que procura fixar toda uma atmosfera de iniciação nos mistérios da vida, através do filtro da memória. Memória que privilegia o ponto de vista da criança, excluindo assim tudo que possa vir a parecer recriação arbitrária da idade adulta. Daí a inegável autenticidade das lembranças e imagens que se sucedem, página a página, como que resgatadas do subconsciente de alguém que tivesse carregado anos afora, intato, o mundo de sua infância.

Trata-se de reminiscências, como faz questão de registrar o poeta no subtítulo da obra, porém, reminiscências de verdade — não encobertas pelo véu da fantasia. Distantes, portanto, de um certo tipo de memorialismo que tende a transformar o tempo da infância em pura ficção, impregnada quase sempre de tons angelicais.

Na Linha do Cerol não apresenta semelhante deformação. No espelho das reminiscências de João Scortecci, a infância irrompe em toda a sua nudez e complexidade: por um lado, sente-se a presença de uma aura de inocência e descompromisso, por outro, toques de malícias, astúcia e mesmo sensualidade.

Reavivando personagens de sua infância, episódios de determinada época (anos 60), flagrantes da cidade natal (Fortaleza), João Scortecci faz história por intermédio do verso. E é como se trouxesse à tona um passado ainda recente, um modo de vida que hoje não existe mais. O texto tem passagens saborosas, suscitando não raro uma sensação de estranhamento pela feliz utilização de termos próprios do universo infantil, às vezes regionais.

O poeta, que sempre foi um praticante da expressão enxuta, a ela permanece fiel em Na Linha do Cerol. Mais: avança no processo de contenção, além de valer-se com maior frequência de símbolos e alusões, sem qualquer prejuízo para a clareza da escrita. Antes, a economia de meios é valorizada por uma maior transparência da linguagem, em comparação com suas obras precedentes.

A título de ilustração, segue-se o último poema do volume:

E por que a arraia não alçou voo?
Não há respostas
para o passado.
Hoje diria: faltou-me água espraiada do Pajeú.

Poção mágica.
Com ela pude fazer a maior das arraias
de lancear arrepios
até então adormecida em reminiscências
Na Linha do Cerol.

Os prefácios, assinados por Fábio Lucas e Caio Porfírio Carneiro, iluminam o texto de forma a realçar-lhe as qualidades ostensivas, bem como aquelas menos aparentes.

Na Linha do Cerol é livro que merece ser lido e relido. João Scortecci imprimiu às suas evocações da infância coesão, graça e dinamismo fora do comum.

Samuel Penido