João Scortecci, ao nomear sua coleção de Água e Sal, subdividindo-a em duas partes, quis, consciente ou inconscientemente, condicionar a interpretação aos dois signos. Água seria a primeira parte e Sal a segunda. Símbolos da origem (água) e da vida (sal)? Muitas águas haveriam de correr, para que o sal nelas se diluísse. A vida misturada à origem?
Ao título acrescentou o subtítulo: fragmentos de tempo algum. A indeterminação do tempo sugere que nos habituemos aos fragmentos sem uma intelecção histórica, medida ou pesada. Convida o leitor a mergulhar na atemporalidade do mito.
Que mitos se reúnem no primeiro salão? Falam da escala ancestral e cosmogônica, da herança psicogenética que se formaliza no reino das palavras:
A linguagem se estrutura
diante do sol
que olha o fogo.
O poeta, na memória confusa da espécie, divisa capítulos da História formadora das civilizações:
Hieroglifos
são acontecimentos e tempo
onde o olho é sangue
e a escrita o sistema.
E confirma uma hipótese há muito posta na mesa por Vico e retrabalhada em nossos dias por Lacan: o universo regido pelo alfabeto, a letra projetada no inconsciente. E o poeta recupera o histórico metamorfoseado em mito, articulando o velho tema da viagem ao aprendizado cartográfico:
Caravelas são destinos
de bússola e pólvora.
É o navegante do papel
nos mapas
de
Água e Sal.
No segundo salão o passado difuso tende a desaparecer para dar lugar ao drama existencial: vivências intransitivas. A nova cartografia aponta para emoções colhidas na infância e no áspero jogo de viver, desenhando um quadro luminoso, povoado de movimento pela imaginação criadora:
Freios e músculos
são do cavalo
ali na parede nua
Ele se foi ontem
e hoje ainda
corre na parede
da sala.
Mais uma vez se reitera a visão do mundo a partir do texto escrito. É o que surpreendemos num poema:
Alguns chamam de papel
o destino
que a cor tem na liberdade.
A pulsão existencial não domina integralmente a segunda parte. Antes, ela se conjuga ao conteúdo social e permite a João Scortecci um dos seus concisos exercícios de lirismo dramático, enredando uma narrativa de forte teor urbano:
Festa de aniversário
com Brigadeiro.
"e a matilha de Pivetes
colhe conchas
de seus segredos de praia.
Água e Sal, portanto, concretiza o saber poético pela densidade de seus jogos verbais, associando harmonicamente inteligência e sentimento e contornando velozmente a tentação do descritivo e da verbosidade declamatória. O poeta se saiu muito bem desta prova, nisto oferecendo o seu verdadeiro talento.
Fábio Lucas