Pesquisar

ÁGRAFO, O FILÓSOFO POETA DO BAIRRO DE PINHEIROS

Ágrafo era um “grafo”. Mutável e finito. Um poeta da oralidade: do estado oral. Seus versos nunca – em tempo algum – foram escritos e – muito menos – impressos. Tudo invenção da cabeça de doido ou quase isso. Era filho de um polímata, de nome Arquimedes, e de Vértices, uma récita. Ágrafo gostava de declamar poesia e contar histórias. Durante muitos anos, ele e sua mãe foram da trupe das palavras soltas, do Largo da Batata, no bairro Pinheiros, na capital paulista. Eu o chamava, carinhosamente, de “filósofo”. Depois que Vértices morreu – de nó nas tripas –, Ágrafo calou-se de tristeza e foi embora de tudo. Perdeu-se! Bebia e usava drogas. Vivia me pregando sustos. Abria o meu carro – um Monza Hatch, que ficava estacionado na Rua Mateus Grou – e dormia no banco de trás. Ágrafo – aquele que nunca teve representação escrita – morava num cortiço da Rua Cardeal Arco Verde, cheio de escadas e portas, próximo à Praça Benedito Calixto. O local não existe mais. Foi demolido. Ágrafo esteve preso, pois, durante alguns anos, vendeu filmes piratas numa barraca de camelô, na Rua Teodoro Sampaio. Adorava histórias da Grécia Antiga. “Paideia!”, dizia sempre em seus versos de rua. O termo "paideia" deriva da palavra grega "paidós" (“criança”) e significa algo como a "educação das crianças" e a formação de um cidadão perfeito e completo, capaz de liderar e ser liderado e desempenhar um papel positivo na sociedade. Certa vez, insisti para que publicasse um livro com seus melhores poemas. Disse: “Não!” E justificava: “Gosto da oralidade da vida.” Num sábado de julho, bêbado, caiu e rolou do alto da escada, bateu a cabeça no portão de ferro do cortiço e sangrou, até à morte. Ligaram-me da delegacia de polícia. Não tinha consigo documento algum de identidade, apenas um cartão da editora. Ágrafo – o filósofo poeta – foi enterrado como indigente. Fiz – na época – o que foi possível fazer. Tinha trinta e poucos anos e, no sangue, o domínio da oralidade poética. Mutável e finito. Hoje relendo um post sobre a Grécia Antiga reencontrei no texto o conceito de “Paideia” e, adiante, no melhor das lembranças, Ágrafo, o filho de Arquimedes e Vértices. Bons tempos! Pinheiros – depois de 40 anos – anda triste, diferente e vertical. Os sobrados – os poucos que ainda restam – estão sendo demolidos. Os amigos de 40 anos – poetas da oralidade e contadores de causos – morreram nesta vida. Eu – teimoso que sou – continuo acreditando na “paideia” do impossível, de fazer da vida um poema sem-fim.

15.04.2022